sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A existência do estado é, acima de tudo, uma aberração jurídica (Hans-Hermann Hoppe)


Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

Qual é a definição técnica de estado? O que uma instituição deve ser capaz de fazer para ser classificada como um estado?
Essa instituição deve ser capaz de fazer com que todos os conflitos entre os habitantes de um dado território lhe sejam trazidos para que tome a decisão suprema e dê a sua análise final.
Mais ainda: deve ser capaz de fazer com que todos os conflitos envolvendo ela própria sejam decididos por ela ou pelos seus funcionários.
Ou seja, o estado é uma organização que detém o monopólio da tomada suprema de decisões para todos os casos de conflito dentro de um território. Essa organização, por definição, tem o poder de proibir todos os outros de agirem como julgador supremo.
Baseando-se nessa definição de estado, é fácil entender por que existe um desejo de controlar um estado: aquele que detenha o monopólio da arbitragem final dentro de um dado território possui o poder de fazer as leis. E aquele que pode legislar, inclusive em causa própria, encontra-se numa posição invejável.
A partir do momento em que passa a existir uma instituição que detenha o monopólio da tomada suprema de decisões para todos os casos de conflito, essa instituição também definirá quem está certo e quem está errado em casos de conflito em que os próprios membros dessa instituição estejam envolvidos.
Ou seja, ela não apenas é a instituição que decide quem está certo ou errado em conflitos entre terceiros, mas também é a instituição que decidirá quem está certo ou errado em casos em que os seus próprios membros estejam envolvidos.
Uma vez que você percebe esse fato, então se torna imediatamente óbvio que tal instituição não apenas pode, por si mesma, provocar conflitos com cidadãos comuns para em seguida decidir a seu favor quem está certo e quem está errado, como também pode perfeitamente absolver todos os seus membros que porventura tenham sido flagrados em delito.
Isso pode ser exemplificado particularmente por órgãos como o Supremo Tribunal Federal (STF). Se um indivíduo incorrer em algum conflito com uma entidade governamental — ou se algum membro do aparato estatal for flagrado em delito —, o tomador supremo da decisão — aquele que decidirá sobre a culpa dos envolvidos — será o Supremo Tribunal, que nada mais é do que o núcleo da própria instituição que está em julgamento.
Assim, é claro, torna-se fácil prever qual será o resultado da arbitração desse conflito: o estado sempre estará certo.
Em consequência, é fácil perceber a falácia fundamental presente na construção de uma instituição como o estado.

A insustentável defesa do estado

O mais sofisticado argumento em favor do estado deve ser brevemente examinado. Desde Hobbes, esse argumento tem sido repetido incessantemente.
Funciona assim: na situação natural das coisas, antes do estabelecimento de um estado, sobejam os conflitos permanentes. Todos alegam ter direito a tudo, o que resulta em guerras intermináveis. Não há como sair dessa situação instável por meio de acordos; pois, afinal, quem iria fazer cumprir esses acordos? Sempre que a situação se mostrasse vantajosa, um dos lados (ou ambos) quebraria o acordo.
Logo, as pessoas reconheceram que há somente uma solução para o desideratum da paz: o estabelecimento, por consentimento, de um estado — isto é, de uma entidade externa e independente, que assumiria a função de fiscal e julgador supremo.
Porém, se essa tese está correta — e os acordos requerem um fiscal externo que os torne vinculantes —, então um estado criado por consentimento nunca poderá existir. Pois, para fazer cumprir o próprio acordo do qual resultará a formação de um estado (tornar esse mesmo acordo vinculante), um outro fiscal externo, um estado anterior, já teria de existir. E, para que esse estado tenha podido existir, um outro estado anterior a ele deveria ter sido postulado, e assim por diante, numa regressão infinita.
Por outro lado, se aceitarmos que os estados existem (e é óbvio que existem), então esse próprio fato contradiz a história hobbesiana. O estado em si surgiu sem a existência de qualquer fiscal externo. Presumivelmente, na época do suposto acordo, nenhum estado anterior existia para arbitrar esse acordo. 
Ademais, uma vez que um estado criado por consentimento passa a existir, a ordem social resultante continua sendo autoimposta. Sem dúvidas, se A e B concordam em algo, esse acordo só pode ser tornado vinculante por uma entidade externa. Entretanto, o próprio estado não está vinculado da mesma forma a um fiscal externo.
Não existe absolutamente nenhuma entidade externa para mediar conflitos entre agentes do estado e súditos do estado; da mesma forma, não há nenhuma entidade externa para mediar conflitos entre os próprios agentes do estado ou entre as próprias agências do estado. Pior ainda: não existe nenhuma entidade externa para punir os próprios integrantes do estado que incorreram em delito.
Sempre que houver conflitos judiciais entre o estado e os seus cidadãos, entre uma agência do estado e outra agência do estado ou, ainda, entre membros do estado, tais acordos serão mediados apenas pelo próprio estado.
O estado não está vinculado a nada exceto às suas regras autoimpostas — isto é, às restrições que impõe a si mesmo. Em relação a si próprio, o estado ainda está na situação natural de anarquia caracterizada pela autofiscalização e pelo autocontrole, pois não existe na hierarquia um estado superior que possa vinculá-lo a algo.
Além disso, se aceitarmos a ideia hobbesiana de que a fiscalização de regras mutuamente consentidas requer uma entidade externa independente, isso por si só descartaria a hipótese da criação de um estado. De fato, tal ideia constitui um argumento conclusivo contra a instituição de um estado — isto é, de um monopolista da arbitração e da decisão suprema.
Pois teria de existir uma entidade independente para arbitrar todos os casos que envolvessem algum agente do estado e a mim (um cidadão privado) — ou que envolvessem apenas agentes do estado.
Da mesma forma, teria de haver uma entidade independente para todos os casos que envolvessem conflitos intraestado (e teria de haver uma outra entidade independente para o caso de conflitos entre várias entidades independentes).
Todavia, isso significa, é claro, que tal estado (ou qualquer entidade independente) não seria um estado no sentido estrito do termo, mas simplesmente uma de várias organizações arbitradoras de conflitos, operando em ambiente de livre concorrência.

Conclusão

Quase todas as pessoas estão convencidas de que o estado seja uma instituição necessária. Sendo assim, é bastante duvidoso que a batalha contra o estado possa ser vencida de maneira tão fácil quanto parece ser no nível teórico e intelectual.
No entanto, a própria existência do estado é, em si mesma, uma aberração jurídica. Contra esse fato ainda não foram apresentados argumentos lógicos.
Portanto, resta-nos apenas nos divertir um pouco à custa dos nossos oponentes defensores do estado. Para isso, sugiro que você persistentemente os confronte com a seguinte charada: “Imaginem um grupo de pessoas sempre alertas à possibilidade de surgimento de conflitos; e então eis que aparece alguém que proponha, como solução a esse eterno problema humano, que ele próprio se torne o arbitrador supremo de todos os casos de conflito, inclusive daqueles em que ele mesmo esteja envolvido.”
Estou certo de que essa pessoa será considerada um piadista ou alguém mentalmente perturbado. Entretanto, é exatamente isso que todos os estatistas propõem.

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