domingo, 8 de setembro de 2019

Como o estado deforma a ética e introduz dois padrões de moralidade (Hans F. Sennholz)



Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

A velha lei cristã que nos ensina a tratar com respeito, cortesia e amabilidade as outras pessoas é uma regra irredutível de conduta individual, uma regra que não possui flexibilidade ou brechas que permitam interpretações deturpadas. Trata-se de um axioma básico para que toda cooperação social e toda coexistência humana sejam pacíficas e produtivas. Com efeito, trata-se de um alicerce indispensável para qualquer civilização que queira prosperar.
No entanto, é inegável que estejamos, de maneira inconsciente e gradativa, solapando a rigidez desse alicerce. E tal procedimento já vem ocorrendo há várias décadas, de modo que aquele outrora robusto sustentáculo hoje se tornou apenas um pequeno toco não mais capaz de sustentar com vigor as relações inter-humanas, bem como toda a vida social.
É verdade que a lei do amor ao próximo ainda fundamenta grande parte das nossas relações individuais diretas. Dentro das nossas famílias, praticamos — ou pelo menos nos esforçamos para praticar — esse mandamento. Nas nossas relações diretas com os parentes próximos e até mesmo com os vizinhos, nós nos esforçamos para não infligir nenhum dano sobre eles e sobre as suas famílias. Uma relação amistosa e cordial ainda é algo mais frequente que uma relação maliciosa e destrutiva. Em todas as nossas interações sociais, sejam elas associações econômicas ou quaisquer outras relações casuais, basicamente respeitamos os direitos e a liberdade do nosso semelhante.
Mas tudo isso se altera quando entra em cena o estado. Ou, colocando de outra forma, tudo isso se altera quando vemos no estado uma ferramenta legítima para a imposição e a consecução das nossas demandas. Com o estado, somos indivíduos transfigurados. Somos outros. Com esse organismo político, não existe espaço para a lei do amor ao próximo; não há espaço para a cortesia, para o respeito e para a amabilidade. Quando agimos utilizando o estado para atender as nossas demandas políticas, agimos de uma maneira através da qual um indivíduo minimamente escrupuloso jamais sonharia em agir nas suas relações inter-humanas diretas. Não existe espaço para a cortesia e para o respeito ao próximo quando fazemos do estado o sistema canalizador das nossas demandas.
Considere os seguintes exemplos.
Como indivíduos, não pensamos em extrair, por meio da violência ou da ameaça de violência, nenhuma fatia da riqueza ou da renda do nosso vizinho. Porém, na vida política, estranhamente passamos a nos sentir livres e moralmente desimpedidos para (1) extrair boa parte da sua renda por meio de altas alíquotas de impostos e para (2) controlar a sua riqueza — e a maneira como ele a investe — por meio de uma multiplicidade de regulamentações econômicas.
Como pais, não pensamos em coagir o nosso vizinho para que contribua para a educação dos nossos filhos. Porém, como membros de um organismo político, recorremos à tributação com o intuito de coagi-lo a financiar a educação dos nossos rebentos, de modo que tenham “educação pública, gratuita e de qualidade”. De quebra, isso faz com que nos sintamos “liberados” das nossas obrigações morais e pessoais para com os nossos próprios filhos. Alguém que quisesse propositalmente criar uma sociedade de pais indolentes e negligentes dificilmente teria uma ideia melhor.
Como seres humanos, não pensamos em surrupiar o nosso vizinho de toda a sua poupança e aposentadoria. Porém, como seres políticos, defendemos que o valor delas seja brutalmente reduzido por políticas governamentais de inflação monetária, de crédito fácil e de empréstimos subsidiados para pessoas e empresas de que gostamos.
Como indivíduos, não pensamos em encarecer artificialmente aqueles produtos que o nosso vizinho mais pobre consegue comprar. Porém, como membros do corpo político, consideramos perfeitamente normal obrigá-lo a pagar mais caro por meio de políticas governamentais de desvalorização cambial e de imposição de tributos sobre a importação, as quais visam proteger aquelas empresas ineficientes pelas quais temos alguma preferência.
Como pessoas caridosas, jamais pensaríamos em atacar a herança de uma viúva e dos seus órfãos; e jamais pensaríamos em coagi-los para que nos colocassem como coerdeiros. Porém, como membros do corpo político, podemos obrigá-los a repassar metade da sua herança para nós.
Como indivíduos empreendedores, não cogitamos obrigar os nossos concidadãos que vivem em outras partes do país a nos auxiliar em nossos empreendimentos locais; porém, como participantes do sistema político, nós os obrigamos a nos ajudar a alcançar os nossos objetivos econômicos por meio de subsídios, repasses obrigatórios e outras contribuições governamentais.

Dois parâmetros distintos de moralidade

Se homens malvados e violentos passassem a assediar o nosso vizinho com o intuito de extorquir uma parte da sua renda (ou toda ela) — ou, simplesmente, se pusessem-se a oprimi-lo de alguma forma —, nós corajosamente sairíamos em defesa sua. Se ele porventura ferisse ou até mesmo matasse um dos seus agressores, iríamos absolvê-lo de qualquer acusação criminosa por ter agido em legítima defesa.
No entanto, se esse mesmo vizinho, por ter se recusado a ter os seus bens confiscados pelo estado por não ter pago devidamente os seus impostos, viesse a ferir ou até mesmo a assassinar em legítima defesa um “representante do estado” que foi à sua propriedade para confiscá-la, iríamos condená-lo por ter se recusado a abrir mão de parte da sua riqueza e por, em consequência, ter impedido o governo de utilizá-la para financiar aqueles programas de que gostamos. E, com toda a nossa fúria e com todo o nosso desejo de vingança, defenderíamos que o nosso vizinho fosse jogado numa penitenciária e que por lá ficasse “por um bom tempo”.
Utilizamos dois padrões distintos de moralidade para mensurar os nossos feitos e as nossas atitudes. Somos rápidos e severos para condenar os delitos que o nosso vizinho comete. Mas somos incapazes de julgar com a mesma severidade as nossas próprias ações quando estas são efetuadas por meio do sistema político.
Condenamos um vizinho quando ele comete fraude, roubo, esbulho, usurpação, sequestro ou assassinato contra os nossos semelhantes. No entanto, somos incapazes de fazer um autojulgamento quando defendemos que o governo confisque a riqueza alheia por meio de impostos; sequestre aqueles indivíduos que não “pagaram devidamente” esses impostos; assassine aquelas pessoas que oferecerem resistência a esse sequestro; reduza a poupança e o poder de compra da população através da impressão de dinheiro (falsificação); estatize ou assuma forçosamente o controle majoritário de empresas privadas; e usurpe por meio de regulamentações, de burocracias o direito dos indivíduos de exercerem atividades econômicas que concorram com as empresas favoritas do governo.

Duas almas em nosso peito

Condenamos um indivíduo por desconsiderar as suas promessas, os seus acordos e os seus contratos; e nos esforçamos para fazê-lo cumprir as suas obrigações contratuais através de ações judiciais e de outros meios jurídicos ao nosso dispor. Mas prontamente condescendemos com práticas governamentais que desprezam promessas e até mesmo os mais básicos mandamentos éticos. Podemos, inclusive, chegar ao cúmulo de nos simpatizarmos com políticas explicitamente ilegais e condenar aqueles que são prejudicados por elas e que agiram em legítima defesa para se protegerem.
A realidade é que temos duas almas em nosso peito: uma que procura fazer o que é moral e eticamente certo; e outra que renega a própria existência de padrões morais e éticos. A humanidade já pagou, está pagando e ainda pagará um enorme preço por ter rejeitado os mais básicos princípios cristãos do respeito, da cortesia e do amor ao próximo na esfera da ação política, a qual só faz crescer. O preço foi, é e será pago na forma de escravidão, guerras e crescentes tensões sociais.

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