sábado, 7 de setembro de 2019

Uma humilde defesa da liberdade (Steve Horwitz)


Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

Uma das reações mais comuns à afirmação de que se deve permitir que as pessoas vivam livres de qualquer interferência política é o argumento de que muitas pessoas simplesmente não são sábias e sensatas o bastante para gerenciarem as suas próprias vidas.
Assim, por exemplo, as pessoas não podem ser livres para poupar como quiserem para a sua aposentadoria — devendo o estado confiscar mensalmente uma parte da sua renda para poupar por elas — porque não são sábias e sensatas o suficiente para fazer isso. 
Igualmente, as pessoas não podem ser livres para educar os seus filhos como quiserem (devendo o estado estar no controle da educação); para escolher os tipos de planos de saúde que desejarem (devendo o estado regulamentar pesadamente esse setor); para consumir o que quiserem (devendo o estado proibir vários bens e encarecer os seus preços); para comprar do estrangeiro os produtos que desejarem (devendo o estado dificultar e encarecer as importações); para escolher os provedores de internet e de telefonia celular que quiserem (devendo o estado restringir o acesso das empresas mundiais ao mercado nacional); ou até mesmo para proteger a sua família (devendo o estado proibir o acesso dos responsáveis a armas de fogo, inclusive àquelas mais simples).
Não apenas as pessoas não podem ser livres para decidir sobre esses assuntos, como também devem ser obrigadas a pagar por tudo isso por meio da extração compulsória de uma fatia da sua renda.
De novo: os defensores de todo esse intervencionismo estatal alegam que as pessoas não podem ter tamanha liberdade porque não são sábias e sensatas o bastante para isso, devendo, portanto, delegar poderes a políticos e burocratas. 
Para agravar a situação, várias pessoas do outro lado debate (nós, libertários) afirmam que as pessoas deveriam ter toda essa liberdade exatamente porque são sábias e espertas o suficiente para lidar com todos esses assuntos.
Ambos os lados estão errados nas suas justificativas.
Comecemos com um ponto que talvez seja óbvio: Se os seres humanos não são sábios o bastante para gerir as suas próprias vidas, por que deveríamos crer que existam seres humanos sábios o suficiente para gerir a vida dos outros? O que garantiria, por exemplo, a eleição de um pequeno número de pessoas genuinamente sábias e sensatas o bastante para gerir não apenas as suas próprias vidas, mas também as nossas vidas?
E o que garantiria que tais pessoas sejam sábias e sensatas o bastante para saber o que é bom não só para elas, mas também para todo o resto? Elas teriam de ser super-humanas.
Logo, o argumento de que “as pessoas não são sábias o bastante e, portanto, têm de ser controladas por pessoas sábias” pode ser imediatamente revertido contra os seus defensores.
Todavia, também há problemas com o argumento de que “as pessoas são sábias o bastante para cuidar de si próprias”. Trata-se de uma questão empírica saber quão sábias e sensatas as pessoas são em geral — saber se elas realmente são boas em tomar decisões. As evidências experimentais da psicologia e da economia comportamental sugerem que a maioria das pessoas está muito distante da racionalidade perfeita do homo economicus.
Ainda que fosse verdade que somos sábios e sensatos o bastante para gerir as nossas vidas, isso por acaso também não implicaria que somos sábios e sensatos o suficiente para gerir a vida dos outros?
Historicamente, o argumento em prol do socialismo e de outras formas menos abrangentes de intervenção estatal sempre teve como premissa fortes alegações sobre a racionalidade humana. Se somos sábios e sensatos o bastante para controlar a natureza, então certamente podemos fazer o mesmo com a sociedade.

A arrogância fatal

Tais argumentos frequentemente foram feitos em termos de querer o melhor para a sociedade, com a sincera crença de que seria possível melhorar as condições de vida daqueles que estão em pior situação ao colocar mais poder de decisão nas mãos do governo.
No entanto, tamanha confiança nos poderes da razão — aquilo que Hayek chamou de “a arrogância fatal” — pode se degenerar (como de fato sempre acontece) na busca pelo poder apenas pelo poder. E isso ocorre tão logo todas as tentativas de fazer um planejamento social racional fracassam. Ou então isso pode também desandar em tentativas ainda mais desumanas de controle social, como a eugenia.
Superestimar a racionalidade humana é uma fórmula que sempre acaba levando alguns seres humanos a exercerem controle sobre outros seres humanos numa escala para a qual nenhum ser humano está capacitado.
Portanto, se os seres humanos não são tão bons assim em tomar decisões — inclusive e especialmente aquelas pessoas com poderes políticos —, então qual exatamente é o argumento em defesa da liberdade, dado que não podemos dizer que as pessoas são muito capacitadas para gerir as suas próprias vidas?
Podemos fazer uma distinção entre duas afirmações distintas:

(1) “Sou muito sábio e sensato; logo, sou capaz de gerir a minha própria vida perfeitamente.”
(2) “Não sei de tudo, nem sempre sou sensato, mas ninguém sabe mais do que eu sobre como melhor gerir a minha própria vida.”

A primeira afirmação representa uma declaração absoluta sobre a racionalidade humana. Já a segunda afirmação é uma alegação bem mais modesta, que diz que, em relação aos outros, sou mais capacitado para tomar as melhores decisões para mim.
Mas a segunda afirmação ainda ignora aqueles fatores essenciais que justificam permitir que até mesmo pessoas irracionais e insensatas gerenciem as suas próprias vidas: se os seres humanos possuem as corretas instituições econômicas, políticas e sociais, eles são capazes de observar o comportamento uns dos outros e de determinar quais tipos de comportamento “funcionam” e quais não. E podem imitar as escolhas daqueles que são bem-sucedidos.
Os processos sociais são processos de aprendizagem; e todos nós nos tornamos melhores nas nossas vidas ao imitarmos as inovações bem-sucedidas de terceiros. Os processos evolucionários biológicos e sociais requerem (a) algum processo por meio do qual a inovação ocorra; (b) alguma maneira de determinar quais dessas inovações são benéficas; e, então, (c) algum modo de imitar ou duplicar aquela inovação dos outros. Esses processos de inovação e imitação são a fonte do progresso tanto no mundo natural quanto no mundo social.
A evolução biológica, obviamente, possui todas essas três. A inovação ocorre por meio da mutação genética. As mutações que permitem que um gene, um animal ou um grupo sobreviva são então transmitidas à geração seguinte. A sobrevivência é o padrão do sucesso. E a transmissão da mutação por meio da reprodução é o ato de imitação.

O mercado como um processo de aprendizagem

Vemos esse mesmo processo em ação no mercado. Os empreendedores surgem com uma ideia nova; essa é a parte da inovação. O sistema de lucros e prejuízos sinaliza ao mercado se um empreendedor teve sucesso ou fracasso em criar valor para terceiros. Se ele tiver obtido lucro, outros produtores respondem a esses sinais de lucro entrando nesse específico mercado e produzindo um bem similar. Esse é o processo econômico de imitação e aprendizado.
Em ambos os processos, o progresso é definido em termos de aprendizado, e esse aprendizado ocorre ao sermos capazes de identificar as inovações bem-sucedidas de terceiros e de descobrir uma maneira de imitá-los. O que constitui o progresso é ser mais bem capacitado para a sobrevivência (na evolução biológica) ou para a criação de valor para terceiros (no mercado). Daí a frase espirituosa de que o progresso social ocorre quando “as ideias fazem sexo”. Um processo similar ocorre na cultura, em que inovações podem ser reconhecidas e imitadas — esse, aliás, é o conceito original da palavra “meme”.
Individualmente, podemos não saber muito; mas, conjuntamente, com as instituições corretas, podemos aprender uns com os outros e, coletivamente, saber muito. Igualmente, você pode ser a pessoa mais esperta da sua cidade, mas todas as pessoas da sua cidade, quando somadas, são infinitamente mais espertas que você.
A justificativa para a liberdade humana, portanto, não é que sejamos tão sábios e sensatos ao ponto de sermos capazes de gerir as nossas próprias vidas perfeitamente bem, mas sim que não somos tão sábios e sensatos individualmente e que a única maneira de nos tornarmos mais sábios e sensatos é aprendendo uns com os outros.
Tal aprendizado requer liberdade para inovar e liberdade para imitar. E deve envolver algum tipo de processo confiável que seja um indicador de sucesso. Nenhum de nós sabe o bastante para gerir impecavelmente a própria vida — nem muito menos para gerir as vidas dos outros. E é exatamente por esse motivo que precisamos de liberdade — principalmente liberdade econômica — para experimentar, acertar, errar, ser bem-sucedido, fracassar e imitar os outros para nos aprimorarmos.
O argumento em prol da liberdade não parte da premissa de que os indivíduos são altamente racionais e capazes de sempre tomarem as decisões ótimas. Pelo contrário: o argumento parte da humilde crença que reconhece a existência de limites reais à nossa racionalidade.
E é essa humildade a base para o argumento em prol da liberdade: a única maneira de progredirmos consiste em deixar as pessoas livres para inovar e imitar, criando e aprimorando instituições que forneçam a informação e o incentivo necessários para mensurar o sucesso e estimular a sua imitação.
É exatamente isso que o livre mercado e a liberdade social fornecem. Não somos sábios e sensatos o suficiente para criar tal sociedade numa prancheta, mas podemos facilmente ceder àquele orgulho arrogante capaz de destruir toda a ordem que faz a liberdade funcionar mesmo em meio à limitada racionalidade que caracteriza os ocupantes mais avançados do planeta Terra.
O argumento em prol da liberdade é aquilo que aprendemos uns com os outros — e não aquilo que cada um de nós sabe.

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