terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O problema econômico (Marcelo Werlang de Assis)


    O ponto de partida para entender a ciência econômica — aliás, dizendo melhor, o próprio fundamento da economia — é o reconhecimento da escassez. 
“Na natureza, nada existe que possa ser chamado de liberdade. A natureza é necessidade inexorável.” — Ludwig von Mises 
“Na natureza, não há nada que possa receber o nome de liberdade; existe apenas a regularidade das leis naturais, às quais o ser humano deve obedecer para que consiga obter algo.” — Ludwig von Mises 
A melhor maneira de compreender o onipresente fenômeno da escassez é imaginar-se naufragado e perdido numa ilha deserta.
Você se vê sozinho nessa ilha. Você só possui as roupas do corpo. Você até pode ficar algum tempo sem beber água e sem ingerir alimentos. Mas você, se quiser continuar sobrevivendo, terá de fazer alguma coisa. Você não poderá ficar de braços cruzados para sempre, comportando-se como um vegetal (o qual, pelo processo de fotossíntese, produz por si mesmo o seu próprio alimento, necessitando apenas de água e de luz). Você terá de buscar uma fonte de água potável (por exemplo, um laguinho na ilha) e de alimentos (p. ex., uma árvore frutífera). Você terá de coletar a água e os alimentos. Você, conforme a visão predominante na ciência da nutrição, também terá de caçar ou pescar para efetuar a ingestão de proteínas, as quais são o material imprescindível para a manutenção da estrutura corporal. Você terá de coletar madeira para fazer fogo. Você, enfim, terá de usar o seu corpo para obter os recursos necessários à sobrevivência. Você, dependendo do clima (p. ex., temperaturas baixas, chuvas fortes e constantes) e dos perigos da ilha (p. ex., animais selvagens), também terá de achar ou construir um abrigo. Você, portanto, descobrirá que os recursos não aparecem do nada; você descobrirá que eles têm de ser encontrados, coletados, modificados, trabalhados, produzidos. Em suma: você entenderá que os recursos são escassos.
O problema econômico é o problema da sobrevivência. A nossa estrutura biológica — materialista, “animalesca” — necessita da obtenção de recursos escassos, os quais, obviamente, são tangíveis e físicos. A realidade da escassez é uma realidade puramente física, imposta pela natureza.
Você, meu amigo náufrago, principalmente se ficar doente (id est, impossibilitado de usar o seu corpo), perceberá que o seu corpo também é um recurso escasso. Como é que você conseguirá obter água e alimentos se não consegue utilizar o seu corpo para esse propósito? Imagine que você não consiga usar as suas pernas, ficando impossibilitado de deambular. (Infelizmente, o ser humano não possui a capacidade de voar que os pássaros têm; aliás, se houvesse essa possibilidade, você simplesmente fugiria da ilha deserta voando. E também não é nada comum ver pessoas demonstrando o poder de mover objetos com a força da mente, o qual é chamado de “telecinese”.) A sua sobrevivência na ilha deserta ficará praticamente inviável. Você não possui outro corpo para obter os recursos necessários. Confrontando-se com essa situação, você perceberá o impacto da ausência de outros seres humanos por perto, os quais poderiam ajudá-lo no esforço de sobrevivência. Em troca, caso eles desejassem uma compensação, você lhes daria o que pudesse produzir só com as suas mãos. Em resumo: mesmo que você esteja sozinho e tenha um corpo perfeitamente saudável, a ausência da divisão do trabalho é sentida de forma muito severa.
A escassez significa que os recursos são limitados; que eles existem numa quantidade limitada; que eles têm de ser renovados e produzidos novamente. O pote de sorvete tem apenas meio litro. O pacote de biscoitos tem apenas cem gramas. A conta bancária tem apenas duzentos reais. Aquele estádio de futebol possui apenas 70.000 lugares. A capacidade daquele reservatório de água é de apenas 50 metros cúbicos. A bateria do notebook dura somente três horas. O carrregador do rifle tem apenas 30 balas. O dia possui apenas 24 horas. A bexiga e o intestino grosso comportam apenas uma determinada quantidade de urina e de fezes; em algum momento, será necessário ir ao banheiro. (E o vaso sanitário serve para somente uma pessoa por vez.) Na biblioteca da escola, há apenas dois exemplares daquela obra imprescindível para a inútil pesquisa que a turma inteira é obrigada a fazer.
A escassez significa a existência de custos. Você possui uma quantia X de dinheiro — a qual lhe custou determinado período de trabalho, de esforço — e deseja adquirir o bem A e o bem B. Mas essa quantia X não possibilita a aquisição desses dois bens. Você tem de escolher entre o bem A e o bem B. O bem ao qual você renunciará significa o custo do bem adquirido. (Prezado leitor, não confunda custo com preço. O preço é apenas uma quantia monetária que se troca por um bem. O custo é tudo aquilo em que se incorreu para se obter essa quantia monetária.) A lógica da economia abrange as escolhas individuais sob o fato da escassez.
A natureza é implacável e cruel. Ela obriga os seres vivos a um esforço constante e perene para manter ativo o seu processo de sobrevivência. Ou você sobrevive e vence — ou você perde e morre.
A vida em sociedade (agrupamento de seres humanos unidos/conectados pela divisão do trabalho) — em especial numa sociedade economicamente próspera — tende a fazer com que nós nos esqueçamos da escassez em razão da diminuição da sua severidade, chegando a afirmar que vivemos num mundo “pós-escassez”, no qual a abundância é a “regra”. (Vivendo em sociedade, o ser humano se especializa num ramo produtivo, obtém o seu dinheiro e o troca pelos frutos do trabalho de todos os outros.) E é exatamente nessa armadilha que a vasta maioria dos autoproclamados estudiosos em economia cai. Eles realmente acham que o problema econômico — o problema da oferta de bens (produtos e serviços) — não existe mais, sobrando, assim, apenas o problema de como “redistribuir” esses bens entre os “membros da sociedade” através de uma ferramenta específica — a violência da burocracia governamental —, a qual, portanto, materializará os supostos “direitos sociais”.
O problema econômico é o “problema da produção”. Sempre haverá necessidades a serem satisfeitas. Em relação aos recursos escassos, podemos dizer que as necessidades são infinitas. A própria vida significa a repetição incessante da satisfação de necessidades. A ingestão de água e de alimentos, por exemplo, tem de ser sempre reiterada. A ideia de que é imprescindível “estimular o consumo” (i.e., a concepção de que o problema econômico é o “problema do consumo”) através da coerção estatal deve ser vista como um disparatado absurdo. A produção sempre precede o consumo — isso, aliás, é pura lógica. Aquelas pessoas que produzem algo que ninguém deseja adquirir, formando estoques que jamais serão voluntariamente “zerados”, cometem o equívoco de prever erroneamente o comportamento da demanda. Elas não possuem o direito de obrigar os demais a adquirir os seus bens. Elas devem arcar com o seu prejuízo e procurar produzir bens de acordo com a quantidade e a qualidade que a demanda assim requerer.
O problema econômico é o problema da criação de riquezas. Quanto mais bens (produtos e serviços) estiverem disponíveis, maior é a riqueza existente. O dinheiro é apenas um meio indireto de troca; a moeda é apenas uma facilitadora das transações voluntárias de bens entre os seres humanos (o escambo exige a coincidência de desejos, o que é muito difícil de acontecer). A vasta maioria dos autoproclamados economistas realmente acha que o problema econômico é o problema da criação de moeda. (O sistema bancário de reservas fracionárias, cartelizado e gerenciado pelo banco central, cria moeda por meio da expansão artificial de crédito.) 
Imagine-se novamente numa ilha deserta. Você desejaria ter uma sacola recheada de dinheiro ou uma sacola recheada de utensílios capazes de auxiliar o esforço de sobrevivência (arma de fogo, caniço e rede de pesca, barraca inflável, lanterna, isqueiro, palitos de fósforos, canivete, facão, machadinha, livro com informações pertinentes, entre tantos outros)? A sacola recheada de dinheiro seria inútil, pois não há outra pessoa com quem comerciar.
Finalizo o raciocínio com o seguinte trecho (longo, mas muito interessante):
Então o senhor acha que o dinheiro é a origem de todo o mal? O senhor já se perguntou qual é a origem do dinheiro? Ele é um instrumento de troca, que só pode existir quando há bens produzidos e homens capazes de produzi-los. O dinheiro é a forma material do princípio de que os homens que querem negociar uns com os outros precisam trocar um valor por outro. O dinheiro não é o instrumento dos pidões, que recorrem às lágrimas para pedir produtos, nem dos saqueadores, que os levam à força. O dinheiro só se torna possível por intermédio dos homens que produzem. É isso que o senhor considera mau? Quem aceita dinheiro como pagamento pelo seu esforço só o faz por saber que ele será trocado pelo produto do esforço de outrem. Não são os pidões nem os saqueadores que dão ao dinheiro o seu valor. Nem um oceano de lágrimas nem todas as armas do mundo podem transformar aqueles pedaços de papel que se encontram no seu bolso no pão de que você precisa para sobreviver. Aqueles pedaços de papel, que deveriam ser ouro, são penhores de honra, e é por meio deles que você se apropria da energia dos homens que produzem. (...)
O dinheiro é feito — antes de poder ser embolsado pelos pidões e pelos saqueadores — pelo esforço honesto de todo homem honesto, cada um na medida das suas capacidades. O homem honesto é aquele que sabe que não pode consumir mais do que produz. Comerciar por meio do dinheiro é o código dos homens de boa vontade. (...) O dinheiro permite que você obtenha em troca dos seus produtos e do seu trabalho aquilo que esses produtos e esse trabalho valem para os homens que os adquirem — e nada mais. O dinheiro só permite os negócios em que há benefício mútuo segundo o juízo das partes voluntárias. (...)
Quando há comércio não por consentimento, mas por compulsão; quando para produzir é necessário pedir permissão a homens que nada produzem; quando o dinheiro flui para aqueles que não vendem produtos, mas têm influência; quando os homens enriquecem mais pelo suborno e pelos favores do que pelo trabalho; quando as leis não protegem quem produz de quem rouba, mas quem rouba de quem produz; quando a corrupção é recompensada — e quando a honestidade vira um sacrifício —, você pode ter certeza de que a sociedade está condenada. O dinheiro é um meio de troca tão nobre que não entra em competição com as armas e não faz concessões à brutalidade. (...) Sempre que surgem destruidores, a primeira coisa que destroem é o dinheiro, pois ele protege os homens e constitui a base da existência moral. Os destruidores se apossam do ouro e deixam em troca uma pilha de papel falso. Isso destrói todos os padrões objetivos e põe os homens nas mãos de um determinador arbitrário de valores. (...) O papel é um cheque emitido por saqueadores legais sobre uma conta que não é deles: a virtude das suas vítimas. (...)
Se me perguntassem qual é a maior distinção dos americanos, eu escolheria — porque ela contém todas as outras — o fato de que foram eles que criaram a expressão “fazer dinheiro”. Nenhuma outra língua, nenhum outro povo jamais usara essas palavras antes — e sim “ganhar dinheiro”. Antes, os homens sempre encaravam a riqueza como uma quantidade estática, a ser tomada, pedida, herdada, repartida, saqueada ou obtida como favor. Os americanos foram os primeiros a compreender que a riqueza tem que ser criada.
(Ayn Rand, A Revolta de Atlas [“Atlas Shrugged”], parte I, capítulo 2) 
“A primeira lição da economia é a escassez: nunca há o bastante de algo para satisfazer todos aqueles que o desejam. A primeira lição da política é ignorar a primeira lição da economia.” — Thomas Sowell 
“O fato mais importante da história intelectual dos últimos cem anos é a luta contra a economia. Os defensores da onipotência governamental não entraram numa discussão sobre os problemas envolvidos. Eles detrataram os economistas e lançaram suspeita sobre os seus motivos; eles os ridicularizaram e amaldiçoaram.” — Ludwig von Mises
A divisão do trabalho significa a fragmentação crescente e contínua das atividades econômicas entre especialistas. Na prática, isso nada mais é do que o fenômeno da “terceirização”. A divisão do trabalho possibilita uma criação de riqueza — uma oferta de bens (produtos e serviços) — que um ser humano sozinho jamais conseguiria realizar. 
A acumulação de capital — o resultado do processo de poupança e investimento que aumenta, aprimora e repõe a quantidade disponível de bens de produção — é o único jeito de haver cada vez mais bens de consumo à disposição dos seres humanos.
Imaginemos um exemplo eficaz para a visualização da acumulação de capital. O náufrago na ilha deserta percebe que pescar usando apenas as mãos nuas é muito complicado. Se ele tivesse uma rede de pesca (um bem de produção), tudo seria mais fácil. Porém, para construí-la, ele precisa de dois dias de árduo trabalho, voltado exclusivamente para o propósito de fazer a rede de pesca. E, para sobreviver nesses dois dias, ele precisa de um estoque de provisões. Esse estoque somente poderá ser realizado se ele se abstiver de consumir uma parcela dos recursos alimentícios que utiliza diariamente; esse estoque somente poderá ser formado se o náufrago poupar (sacrificar o seu consumo presente tendo em vista um consumo maior no futuro; diminuir a sua preferência temporal; postergar a gratificação). Assim que a rede de pesca está pronta, a capacidade de produção do náufrago aumenta vertiginosamente. Ele consegue pescar com facilidade qualquer número de peixes (bens de consumo). O seu padrão de vida material se eleva graças à criação de um bem de produção, o qual foi possibilitado pela poupança anterior e possibilita um posterior consumo maior. 
A criação de bens de produção (“bens de ordem superior”) significa, em outras palavras, o estabelecimento de processos produtivos cada vez mais indiretos i.e., cada vez mais distantes, tanto em termos de tempo quanto em termos de espaço, do consumo/uso final. Um número cada vez maior de etapas é utilizado para atingir o único objetivo da produção: o surgimento de bens de consumo (“bens de primeira ordem”), os quais satisfazem as necessidades e os desejos e determinam o valor dos bens de produção. A acumulação de capital denota todos os bens utilizados para auxiliar o esforço humano e para maximizar a sua produtividade, o que resulta na disponibilidade de uma quantidade crescente de bens de consumo (elevando-se, portanto, o padrão de vida material). A seguir, uma lista de exemplos disso: as máquinas, os equipamentos e as ferramentas de trabalho; os meios de transporte e de comunicação; as instalações industriais (fábricas), assim como as edificações (imóveis) de diversas finalidades (armazéns, lojas, escritórios); as minas, as fazendas e as instalações agrícolas; os dispositivos de informática; os estoques de diferentes conteúdos. Finalmente, é importante salientar que os bens de produção também sofrem desgaste, sendo necessária a realização de reparações (consertos) e reposições (substituições) — o que só pode acontecer se houver continuidade no processo de poupança e investimento.
“Com o auxílio de ferramentas e máquinas melhores, a quantidade dos produtos aumenta, e a qualidade deles se aprimora. Assim, o empregador estará em posição de obter dos consumidores um valor maior do que aquele que o empregado consumiu em uma hora de trabalho. Somente dessa forma o empregador poderá — e, devido à concorrência com outros empregadores, será forçado a — pagar maiores salários pelo trabalho do seu empregado.” — Ludwig von Mises
A poupança ocorre com a diminuição da preferência temporal — com a renúncia à imediata gratificação com a finalidade de, em troca, obter um futuro melhor; com a adoção da visão de longo prazo, orientada para o futuro — e possibilita o investimento, o qual ocasiona a acumulação de capital. O juro é oriundo de um princípio básico da ação humana, a preferência temporal, que se traduz no conceito de que as pessoas preferem usufruir um determinado bem no presente a usufruir esse mesmo bem no futuro. Dizendo de outra forma, os “bens presentes” possuem um valor maior — um prêmio — em relação aos “bens futuros”; o ser humano prefere uma determinada quantia de determinado bem no presente à mesma quantia desse bem no futuro. A preferência temporal, enfim, implica a noção de que o indivíduo, em face da impossibilidade de adiar eternamente o consumo/usufruto, sempre leva em consideração o tempo que será necessário para efetuar a concretização de um fim específico. 

A escassez sempre existirá no mundo material. E somente estaremos em situação confortável em relação a ela se mantivermos e ampliarmos a divisão do trabalho e a acumulação de capital.

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