sábado, 28 de março de 2020

Entrevista e Artigo



Nesta edição de fim-de-semana do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, foi publicada uma entrevista com Luiz Carlos Mendonça de Barros, o “Mendonção”, um famoso keynesiano brasileiro. Lembrei-me de um artigo publicado no ano de 2011 que fazia menção a esse sujeito.
Aqui estão ambos os textos. Leia e tire as suas conclusões.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Uma breve análise econômica e jurídica das extremas medidas restritivas impostas pelos governadores e prefeitos (Marcelo Werlang de Assis)




Diante da suposta ameaça à civilização humana provocada pela peste chinesa (“coronavírus”), governadores e prefeitos, auxiliados pelos seus burocratas, impuseram pesadíssimas restrições às atividades econômicas, permitindo que continuassem funcionando apenas aquelas atividades arbitrariamente consideradas “essenciais” (e, em algumas raras exceções, somente limitando o horário de funcionamento de atividades “não essenciais” — o que, por sinal, configura um contrassenso, pois diminui as oportunidades disponíveis para as pessoas comparecerem aos lugares, sendo aumentado o número de indivíduos por faixa de tempo).
Uma enorme parcela da população brasileira se viu impedida — sob a ameaça de multa, de perda de licenças (e de confisco de mercadorias) e de prisão — de obter receitas com as atividades econômicas “não essenciais” que antes desempenhavam. Um número elevado de empreendimentos de micro, pequeno e médio portes já sofreu graves danos financeiros.
A questão central é: essa proibição generalizada de atividades pode ser entendida como correta dos pontos de vista econômico e jurídico?

Do ponto de vista econômico

A distinção que se fez — entre atividades “essenciais” e atividades “não essenciais” — é puramente arbitrária e demonstra pleno desconhecimento de economia.
O valor é subjetivo — os seres humanos dão valor a coisas e experiências, e cada ser humano possui as suas próprias preferências. Aquilo que alguém considera “essencial” pode ser considerado “não essencial” por outra pessoa.
A divisão do trabalho significa a fragmentação crescente e contínua das atividades econômicas entre especialistas. Na prática, isso nada mais é do que o fenômeno da “terceirização”. A divisão do trabalho possibilita uma criação de riqueza — uma oferta de bens (produtos e serviços) — que um ser humano sozinho jamais conseguiria realizar. A divisão do trabalho — nos tempos atuais, repita-se, cada vez mais fragmentada — significa que todos dependem de todos, que todos se encontram interligados, que todos afetam todos. A complexidade da cadeia produtiva é colossal.
Os funcionários de um hospital, nas tarefas que desempenham, fazem uso de uma infinidade de bens (produtos e serviços) ofertados por uma miríade de outras organizações (cujas atividades, porém, são classificadas como “não essenciais”). Os caminhoneiros, nos percursos que realizam, utilizam aquilo que restaurantes de beira de estrada, borracharias e oficinas mecânicas oferecem (cujas atividades, porém, são classificadas como “não essenciais”). Os celulares dessas pessoas — importantíssimos instrumentos de trabalho e de comunicação — podem precisar dos serviços de profissionais de conserto (cujas atividades, porém, são classificadas como “não essenciais”).
A proibição de todas as atividades econômicas consideradas “não essenciais” passa, sim, a interferir no funcionamento das atividades econômicas consideradas “essenciais”.

Do ponto de vista jurídico

O ordenamento jurídico do estado brasileiro consagra o trabalho e a livre iniciativa como valores fundamentais — os quais, portanto, não podem ser obliterados pelas medidas de proteção da saúde. Deve haver uma coexistência entre o bem-estar físico (corpóreo) e o bem-estar econômico (material) da população.
Abaixo, são reproduzidos cinco trechos retirados do famoso livro “Teoria dos Princípios — Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos” (São Paulo: Malheiros Editores, 2006), do jurista Humberto Bergmann Ávila:

(1)
Com efeito, os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, isto é, normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção. Diversamente, os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, portanto, não se podem confundir princípios com postulados.
As regras, a seu turno, são normas imediatamente descritivas de comportamentos devidos ou atributivas de poder. Distintamente, os postulados não descrevem comportamentos, mas estruturam a aplicação de normas que o fazem. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 123)

(2)
Por exemplo, o postulado da proporcionalidade exige que as medidas adotadas pelo Poder Público sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 128)

(3)
O postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove o fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca. A aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 146)

(4)
O postulado da proporcionalidade não se confunde com a ideia de proporção em suas mais variadas manifestações. Ele se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamental (ais) afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).
Nesse sentido, a proporcionalidade, como postulado estruturador da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre um meio e um fim, não possui aplicabilidade irrestrita. Sua aplicação depende de elementos sem os quais não pode ser aplicada. Sem um meio, um fim concreto e uma relação de causalidade entre eles não há aplicabilidade do postulado da proporcionalidade em seu caráter trifásico. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 149)

(5)
Vamos a um exemplo. O Poder Público, para proteger os consumidores, obriga os supermercados de uma determinada região a etiquetar todos os produtos vendidos em seus estabelecimentos. A medida serve de meio para promover um fim – qual seja, a proteção dos consumidores. A adoção da medida causa uma restrição ao direito de livre exercício da atividade econômica dos supermercados. Como a situação envolve uma relação de causalidade entre um meio e um fim concreto, tem aplicabilidade o postulado da proporcionalidade. Procedendo-se ao exame de adequação, pode-se concluir que os efeitos da medida adotada contribuem para a gradual realização do fim. Etiquetar os produtos contribui para proteger os consumidores. Pondo em prática o exame da necessidade, é plausível concluir pela inexistência de outro meio alternativo, se os meios disponíveis não são considerados igualmente adequados para proteger os consumidores. Os efeitos da implantação do código de barras promovem menos intensamente a proteção da maioria dos consumidores do que a obrigação de etiquetar cada produto. A obrigação de etiquetar os produtos é necessária. E, contrapondo-se as vantagens e as desvantagens da adoção da medida, pode-se chegar à conclusão de que, apesar de não haver outro meio igualmente adequado para proteger os consumidores, ainda assim o grau de restrição causado ao princípio do livre exercício da atividade econômica pela obrigação de colocar etiquetas em todos os produtos (custos administrativos, trabalho humano de etiquetar e novamente etiquetar quando os preços mudam, abandono do moderno sistema de código de barras) é desproporcional ao grau de promoção do princípio da proteção dos consumidores (proteção de uma minoria desatenta de consumidores em detrimento da média dos consumidores, que é protegida por outros meios já existentes). Enfim, a medida, apesar de adequada e necessária, é considerada desproporcional em sentido estrito. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 135 e 136)

As extremas medidas de restrição impostas pelos governadores e prefeitos são, em teoria, adequadas ao fim almejado (proteger o bem-estar físico da população com a diminuição da velocidade de propagação do patógeno e a preservação da capacidade de atendimento do sistema de saúde), mas desnecessárias  e desproporcionais em sentido estrito. (Atualização: agora, na metade de maio de 2020, está sendo constatado que o confinamento de várias pessoas em recintos fechados — os seus lares —, na verdade, está fomentando a contaminação. Além disso, ar puro e luz solar são essenciais à saúde.)
São desnecessárias porque existem meios mais brandos e menos invasivos, que mais bem preservam os valores fundamentais do trabalho e da livre iniciativa. A finalidade — a proteção da saúde da população — poderia ter sido alcançada com o isolamento de grupos de risco, com a imposição do uso de máscaras apropriadas, com a obrigatoriedade de desinfecção diária dos ambientes, com a limitação do número de pessoas em locais como restaurantes e lanchonetes.
São desproporcionais em sentido estrito porque as desvantagens — o desmantelamento da divisão do trabalho (da cadeia produtiva); os grandes prejuízos, as inúmeras falências, as demissões em massa; o desabastecimento de itens básicos (acompanhado do aumento dos preços deles) — são enormes diante de um patógeno cuja taxa de letalidade se demonstra baixa (apesar do seu grande poder de contágio) e cujas vítimas se encontram, na maioria, em idade avançada e/ou em situação debilitante por causa de outros problemas de saúde.

Conclusão

Os políticos, assim como os burocratas que trabalham para eles, certamente estão gostando dessa situação — pois os seus poderes aumentaram em alcance e tamanho. Ainda que as receitas tributárias estejam minguando (visto que os “fatos geradores” que dão gênese às obrigações dos contribuintes não estão ocorrendo), os governadores e os prefeitos com certeza estão se regozijando com a satisfação da libido dominandi (o desejo de mandar) que tanto possuem; as suas naturais tendências tirânicas encontraram na peste chinesa (“coronavírus”) a justificativa perfeita para elevar o controle que impõem à população. E esses bandidos, infelizmente, ainda serão vistos como “supremos heróis salvadores” por ela.

domingo, 15 de março de 2020

Como o livre mercado lidaria com epidemias e quarentenas (Robert P. Murphy)



Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

Publicado originalmente no ano de 2009.

Com o aumento da histeria governamental e midiática sobre uma possível pandemia de influenza suína ou, popularmente, “gripe suína” (antes, a histeria era por causa da gripe aviária e da SARS) —, algumas correntes levantaram uma discussão interessante: na ausência de autoridades estatais, como o livre mercado cuidaria dessas situações?
Antes, é preciso entender que qualquer governo sempre se beneficia com essas “crises exógenas”, pois elas são o momento propício e perfeito para que os burocratas possam exigir que obedeçamos a todo decreto emergencial que porventura editem. Em qualquer governo, sempre existem vários parasitas entranhados na mais alta burocracia implorando para que algum tipo de lei marcial seja declarada. O governo do México, por exemplo, já adotou essa prática, e vários outros governos estão salivando por essa oportunidade.
Poucos se lembram, mas em 1976 ocorreu exatamente a mesma “epidemia” dessa mesma gripe suína. Na ocasião, o governo americano criou um programa de vacinação que custou enormes somas de dinheiro e, pior, deixou enfermos centenas de americanos que tomaram a vacina, sendo que aqueles que não se submeteram ao processo passaram imunes pela “epidemia”.
No entanto, apesar desse caso e de vários outros exemplos da péssima gerência governamental tanto na saúde quanto em casos de crises epidêmicas, a maioria das pessoas ainda diria: “Sim, sei que o governo não é perfeito, mas doenças contagiosas definitivamente são uma daquelas áreas em que precisamos do governo. O livre mercado funciona para produzir tevês e laptops, mas não para conter epidemias.”
Assim como ocorre com os argumentos em prol de outros programas governamentais, este aqui também sofre de dois simples problemas: falta de informação e falta de imaginação. Se o governo abdicasse da sua função de controlar doenças contagiosas, o público estaria muito mais seguro. 
Primeiro e mais óbvio: o governo restringe a liberdade de associação. Mais especificamente, a liberdade que os proprietários de estabelecimentos têm de proibir que determinados indivíduos adentrem os seus recintos.
No atual ambiente jurídico, empresas aéreas, de ônibus, parques de diversão, hotéis e assim por diante não podem criar e seguir a sua própria lista de pessoas que podem ou não podem adentrar as suas propriedades. Por exemplo, essas empresas não podem hoje criar a sua própria lista de pessoas com doenças contagiosas. Pois, se essas pessoas não são consideradas um risco pelo governo, então elas estão livres para processar qualquer empresa ou dono de estabelecimento que não as permita adentrar o seu recinto.
Portanto, se um determinado indivíduo está com suspeita de tuberculose, porém o governo não o considera um risco, então uma empresa aérea não pode impedir que ele utilize os seus serviços sem o risco de ser processada.
Todavia, suponhamos agora que o governo de fato permitisse que os proprietários tivessem o direito de decidir quem pode e quem não pode utilizar a sua propriedade (que radical!). Quais instituições voluntárias surgiriam para ajudar uma sociedade livre a enfrentar o problema das doenças contagiosas?
Existem dois princípios concorrentes que precisamos considerar. Por um lado, é um mau negócio um estabelecimento excluir potenciais consumidores por motivos de saúde, especialmente se depois for revelado que a exclusão se baseou em informações errôneas. Por outro lado, seria realmente um péssimo negócio para esse estabelecimento ou essa empresa se vários clientes contraíssem de outros clientes alguma doença contagiosa em decorrência de uma supervisão omissa.
Visto que esses empreendedores não estão em posição de fazer tais julgamentos aliás, nem têm a obrigação de possuir os conhecimentos para isso —, eles de bom grado pagariam para que peritos e técnicos da saúde os orientassem a como melhor gerir as suas operações de modo a minimizar os riscos para os seus empregados e clientes.
Com o tempo, por meio dessas consultorias e, principalmente, por meio do mecanismo de lucro e prejuízo , uma fatia eficiente dos recursos seria direcionada para a prevenção de doenças. Afinal, qualquer contágio poderia ser atribuído ao estabelecimento. Nesse cenário, por exemplo, restaurantes self-service teriam “vigias do espirro”, todos os empregados em funções críticas necessariamente usariam luvas, e todos os banheiros teriam portas-sabão.
No entanto, além dessas óbvias salvaguardas, outras mais sofisticadas poderiam surgir. Por exemplo, firmas especializadas em consultoria poderiam montar equipes de especialistas médicos para monitorar o mundo, identificando para as companhias aéreas indivíduos que apresentassem alguma suspeita de doenças contagiosas. Para que esses indivíduos marcados pudessem comprar as suas passagens e embarcar nos aviões, eles primeiro teriam de ser checados pelos clínicos gerais (ou pelos seus próprios médicos, caso estes tenham a sua competência reconhecida pelas companhias aéreas).
Desnecessário dizer, as empresas aéreas não nutririam qualquer interesse em impedir as pessoas de viajar, pois isso significaria prejuízos; da mesma forma, elas não poderiam permitir que passageiros com doenças contagiosas contaminassem outros passageiros, pois isso lhes geraria processos. É sobre esse equilíbrio que elas assim como restaurantes, cinemas, parques e hotéis teriam de trabalhar.
A grande diferença entre mecanismos voluntários e o monopólio dado ao governo sobre o gerenciamento de questões de saúde pública é que no primeiro arranjo existiriam todos os incentivos para se fazer um bom trabalho. Se uma companhia aérea rejeitasse determinados clientes porque a Consultoria Médica A disse que eles tinham tuberculose ou gripe suína quando na verdade estavam sadios, esse vacilo seria péssimo para os negócios. Os concorrentes da Consultoria Médica A (aqueles que tivessem um melhor histórico) iriam propagandear esse fato nos seus panfletos, e a companhia aérea trocaria de equipe médica caso imaginasse que a rival pudesse fazer um trabalho melhor.
Em contraste, o que acontecerá com as agências de vigilância sanitária caso haja alguma pandemia? O seu orçamento será cortado? Cabeças rolarão? É claro que não. Ocorrerá o exato oposto: quando as agências do governo fazem um serviço ineficiente, isso é transformado em prova de que ela está carente de recursos e necessitada de mais dinheiro dos contribuintes.

E EM RELAÇÃO ÀS QUARENTENAS?

A possibilidade de quarentenas é apenas uma aplicação específica das ideias acima. Numa sociedade livre, onde todos os pedaços de terra são propriedade privada de indivíduos, não seria possível uma pessoa ter cassado o seu “direito de andar por aí” simplesmente porque, antes de tudo, não haveria algo como o “direito de andar por aí”.
Mais propriamente: o que poderia acontecer é que, se algum indivíduo fosse considerado um perigo para a saúde pública, todas as agências de saúde que quisessem zelar pela sua reputação o colocariam no topo das suas listas de perigos iminentes e mandariam e-mails, faxes e afins para alertar empresas e proprietários, aconselhando-os a tomarem cuidado com essa pessoa.
Ou poderíamos pensar também em seguradoras, que, para evitar prejuízos, alertariam os seus clientes sobre eventuais ameaças. Esses donos de propriedade provavelmente teriam acordos predeterminados sobre como agir em casos como esses, de modo que a resposta pudesse ser coordenada. 
Empresas privadas não são estúpidas; elas não precisam que o governo lhes dê ordens para manter os leprosos afastados. Se, por exemplo, alguma igreja quiser abrir as suas portas para tal pessoa, isso está perfeitamente dentro do seu direito de propriedade. (Por questão de cortesia, esperaríamos que tal política fosse anunciada para os outros, de modo que eles pudessem escolher não visitar essa instalação.)
Naturalmente, os repositórios finais para esse determinado tipo de pessoa seriam instalações cujos proprietários creem na possibilidade de seguramente conter a doença, evitando a sua dispersão. E o nome comum que as pessoas dariam para essas instalações seria “hospitais”.
Numa sociedade livre, estar sob “quarentena” significaria simplesmente que a maioria dos proprietários (de estradas, calçadas, shopping centers, hotéis, fábricas, etc.) recusaria o acesso de pessoas com doenças contagiosas, de modo que elas teriam poucas opções além das instalações que oferecem tratamento.
Em todo caso, a imagem de fugitivos egocêntricos carregando uma doença altamente contagiosa é um pouco irrealista. No mínimo, essas pessoas estariam colocando em risco as vidas de pessoas das suas próprias famílias e/ou de pessoas que amam. Aqueles que possuem uma doença contagiosa são pessoas também, não desejando que outras fiquem doentes. Ademais, se quiserem ser tratados, tais indivíduos, de um jeito ou de outro, terão de ir a um hospital.

CONCLUSÃO

O livre mercado pode lidar com doenças contagiosas mais eficientemente do que o governo da mesma forma como se sai melhor que o governo quando a questão é a oferta de computadores, carros e produtos agrícolas. A ideia de que devamos dar ao governo o direito de trancafiar uma pessoa só porque ele a classifica como um risco à saúde pública é algo por si só bastante nauseante.

domingo, 8 de março de 2020

Pela total separação entre a moeda e o estado (Llewellyn H. Rockwell Jr.)

Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis
Um banco central efetua três funções significativas para o sistema bancário e para o governo: 
(1) ele serve de emprestador de última instância — o que significa, na prática, a garantia de que sempre imprimirá dinheiro para socorrer as grandes instituições financeiras;
(2) ele coordena, em conjunto com os bancos, o processo de inflação da oferta monetária, estabelecendo uma taxa uniforme à qual os bancos devem expandir o crédito, fazendo dessa forma com que o sistema bancário de reservas fracionárias seja menos instável e mais lucrativo do que seria sem um banco central — isso explica, diga-se de passagem, o motivo pelo qual os próprios bancos sempre clamaram por um banco central;
(3) ele permite, por meio da sua criação de dinheiro, que o governo possa financiar as suas operações de maneira muito mais barata e sorrateira do que poderia caso não existisse um banco central. 
Nenhum governo chegou a dizer: “Queremos gastar mais, portanto temos de abolir o banco central.” Ou: “Queremos gastar mais, então devemos acabar com a inflação e com o papel-moeda fiduciário de curso forçado.” Essa postura, por si só, já é um bom indicativo de toda a restrição que uma moeda sólida impõe sobre os governos. Metais preciosos não podem ser criados do nada — e é por essa razão que os governos e os intelectuais governistas se exasperam à simples menção de um sistema monetário baseado neles.
O governo pode aumentar as suas receitas de três maneiras. A tributação é o meio mais visível — e, por isso mesmo, o mais limitado. Não é possível aumentar impostos indefinidamente, sob o risco de incitar um levante popular. O governo também pode tomar emprestado o dinheiro de que necessita, mas tal medida também acaba se tornando muito visível para o público, pois conduz a taxas de juros maiores — à medida que o governo passa a competir por uma quantia limitada de crédito disponível, este se torna cada vez mais escasso para os outros tomadores de empréstimo; consequentemente, os juros sobem.
Criar dinheiro do nada, a terceira opção, é o método preferível dos governos, uma vez que o processo por meio do qual a classe política desvia recursos da sociedade através da inflação é muito menos direto e óbvio do que nos casos da tributação e da tomada de empréstimos. Antigamente, os reis cortavam as bordas das moedas metálicas (expediente esse chamado de “clipagem” — “coin-clipping”, em inglês) e utilizavam esses refugos para fundir novas moedas, provocando assim um aumento da oferta monetária. Tão logo descobriram esse truque, os governos passaram a guardar ciosamente o poder de manipular a moeda. Mises certa vez disse que, se o Banco da Inglaterra — criado em 1694 — já existisse e estivesse à disposição do rei Charles I durante a Guerra Civil inglesa da década de 1640, o monarca poderia ter esmagado as forças parlamentares ordenadas contra ele, e a história inglesa teria sido bastante diferente.
Juan de Mariana, o jesuíta espanhol que escreveu tratados no período que abrange o final do século XVI e o início do século XVII, é mais bem conhecido no campo da filosofia política por ter defendido o regicídio na sua obra de 1599, De rege et regis institutione [“Sobre o rei e a instituição real”]. Estudiosos frequentemente pressupõem que foi em decorrência dessa provocativa afirmação que o governo espanhol o aprisionou por um tempo. Mas a verdade é que foi o seu Tratado sobre a Alteração da Moeda — o qual condenava a inflação monetária como algo imoral e maléfico — que lhe trouxe problemas.
Apenas pense nisso. Dizer que a população tem o direito de matar o rei era uma coisa relativamente aceitável. Agora, atacar diretamente a inflação, a força vital do regime? Isso já era ir longe demais.
Naquela época, se o governo incorresse em gastos adicionais e decidisse financiá-los parcialmente pela manipulação da moeda, o processo era direto e não muito difícil de entender. Atualmente, a sequência de eventos é um pouco mais complicada, porém não fundamentalmente diferente. Hoje, se um governo necessita de mais dinheiro, ele não irá simplesmente imprimir dinheiro e utilizá-lo para cobrir essa diferença. O processo não é tão grosseiro dessa forma. No entanto, se o examinarmos mais detidamente, veremos que se trata essencialmente da mesma coisa.
Os bancos centrais, criados por todos os governos ao redor do mundo, permitem que se possa gastar mais do que se arrecada em impostos. Tomar empréstimos permite aos governos gastarem mais do que coletam em impostos, mas tal medida, por si só, conduziria a um inevitável aumento dos juros — o que, por sua vez, provocaria um perigoso desconforto no público. Sendo assim, o esquema atual de inflação é muito mais engenhoso. Em vez de dar o dinheiro diretamente para o governo, o Banco Central cria dinheiro eletrônico e o injeta no sistema bancário, provocando assim uma redução nos juros. Ato contínuo, os bancos utilizam esse dinheiro recém-criado para comprar títulos do Tesouro. Dessa maneira, os juros não sobem — e, em consequência disso, os efeitos dos empréstimos governamentais sobre os juros são ocultados. 
Logo, os bancos centrais — ao criar dinheiro, injetá-lo no sistema bancário e, com isso, afetar os juros — servem aos propósitos dos governos. Portanto, essencialmente, o Banco Central imprime dinheiro e o entrega ao governo, mas a maneira como ele faz isso não é tão direta e óbvia.
Conforme explicado, o governo federal vende os seus títulos para o sistema bancário a preços artificialmente altos (o que correspondentemente significa juros baixos) porque os compradores da sua dívida sabem que poderão revender tais títulos ao Banco Central — é assim, comprando os títulos do Tesouro em posse dos bancos, que o Banco Central injeta dinheiro no sistema bancário. Sim, o governo federal tem de pagar juros sobre esses títulos que agora estão em posse do Banco Central, mas o que ocorre é que, no final do ano, o Banco Central remete esse dinheiro de volta para o Tesouro, retendo apenas o suficiente para cobrir as suas despesas. É isso que ocorre com o dinheiro dos juros. E, caso você esteja pensando que o governo federal ao menos precisa pagar o principal da dívida em posse do Banco Central, a verdade é que não. O governo pode rolar a sua dívida pendente quando ela estiver vencendo — e ele faz isso emitindo um título novo para pagar o principal do título antigo.
Por meio desse processo convoluto — não coincidentemente, um processo sobre o qual o público em geral quase nada sabe a respeito —, o governo federal se torna capaz de fazer o equivalente a imprimir dinheiro e gastá-lo. Ao passo em que todas as pessoas e empresas têm de adquirir recursos gastando o dinheiro que ganharam em atividades produtivas — em outras palavras, elas primeiro têm de produzir algo para a sociedade para só então poderem consumir —, o governo pode adquirir recursos sem antes ter produzido algo. A criação de dinheiro por meio do monopólio estatal se torna, dessa maneira, apenas mais um mecanismo através do qual a relação de exploração do governo sobre a população se perpetua.
E, como o Banco Central possibilita ao governo federal ocultar os reais custos de todos os seus gastos, a realidade é que o Banco Central fornece um incentivo para que o governo incorra em gastos adicionais em absolutamente todas as áreas, criando infinitos ministérios, programas, subsídios, regulamentações e agências reguladoras, sem que o público sinta direta e imediatamente os custos desses programas.
A expansão monetária é especialmente útil para um governo que quer gastar mais com programas eleitoreiros, mas não deseja aumentar impostos nem tolerar um aumento de juros decorrente do seu maior volume de empréstimos para financiar essa gastança. É por isso que toda e qualquer conversa sobre banco central independente não passa de espuma. É racionalmente impossível imaginar um banco central mantendo uma postura monetária rígida e austera quando todo o regime — assim como todo o meio acadêmico e toda a mídia — está demandando estímulos e juros baixos.
Por outro lado, embora seja verdade que um padrão-ouro restrinja a ação dos governos, também é verdade que os governos nunca tiveram dificuldade em arrumar desculpas e pretextos para sair do padrão-ouro. Exatamente por essa razão, o padrão-ouro por si só não representa uma restrição suficiente sobre as ambições de algum governo.
E, exatamente por essa razão, ao olharmos para o futuro, temos de abandonar toda timidez nas nossas propostas para uma reforma monetária. Não queremos um padrão-ouro-câmbio, como aquele que existiu sob o sistema de Bretton Woods. Também não queremos um arranjo monetário em que o preço do ouro seja utilizado como um instrumento de calibragem para auxiliar a autoridade monetária nas suas decisões sobre a quantidade de dinheiro que deva criar. Sequer desejamos a restauração do padrão-ouro clássico, por maiores que sejam os seus méritos. 
No século XIX, os teóricos monetários defensores da moeda sólida cunharam a maravilhosa expressão “separação entre sistema bancário e estado”. Isso sem dúvida seria um bom começo. Mas queremos mais. Aquilo de que necessitamos hoje é: uma total separação entre moeda e estado.
Existem algumas características que tornam o dinheiro um bem singular dentre todos os bens de uma economia. Em primeiro lugar, o dinheiro é valorado não pelas suas características intrínsecas, mas pelo seu uso nos processos de troca indireta. Em segundo lugar, ao contrário de todos os outros bens, o dinheiro não é consumido, mas sim passado adiante de uma pessoa para outra — o que significa que o dinheiro não é um bem de consumo nem um bem de produção. Finalmente, todos os outros produtos e serviços da economia possuem os seus preços expressos em termos desse bem.
No entanto, apesar dessas características singulares, não há absolutamente nada em relação ao dinheiro — aliás, nem em relação a qualquer outro produto ou serviço — que possa nos fazer crer que a sua oferta deva ser efetuada pelo governo e somente por ele. O dinheiro constitui a metade de toda transação de mercado. As pessoas que dizem acreditar na economia de mercado, mas que ainda assim estão dispostas a conceder ao estado a custódia desse bem crucial, deveriam repensar essa postura inexplicável e incoerente.
Intervencionistas frequentemente alegam que, se um determinado bem é muito importante, então a sua produção não pode ser deixada a cargo das forças do livre mercado. A réplica dos defensores do livre mercado vira esse argumento do avesso: quanto mais importante for um bem, mais essencial é que o governo fique o mais distante possível dele, deixando a sua produção inteiramente a serviço da livre concorrência.
Em nenhuma outra área essa afirmativa é tão crucial e verdadeira quanto na questão do dinheiro. Como disse Ludwig von Mises certa vez, a história do dinheiro é a história dos esforços governamentais para desvalorizá-lo. O controle estatal sobre a moeda causou apenas: inflação monetária, empobrecimento da sociedade em relação ao estado; bolhas financeiras, ciclos econômicos devastadores; consumo de capital (visto que a inflação falsifica a contabilidade de lucros e prejuízos); risco moral; e, acima de tudo, a expropriação da população de um modo que ela é incapaz de entender. É essa expropriação silenciosa através da inflação monetária que possibilita o contínuo agigantamento dos estados e da sua tirania ao redor do mundo; e são todas essas agressões combinadas que constituem um convincente compêndio popular contra o atual sistema e a favor de um substituto monetário gerido pelas forças da livre concorrência.
A expansão dos poderes do estado e a máquina de criar dinheiro, em suma, sempre estiveram intimamente relacionadas. É inútil denunciar o agigantamento do estado e as suas distorções morais sem, ao mesmo tempo, atacar o indispensável mecanismo que possibilita toda essa expansão. Se realmente queremos nos opor ao estado e a todas as suas manifestações — a sua gastança, o seu endividamento; a sua crescente tirania, a sua burocracia, as suas regulamentações; a sua rede de proteção aos poderosos com boas conexões políticas, os seus subsídios que distorcem o livre mercado; e assim por diante —, devemos apontar o dedo para a fonte que possibilita tudo isso: o Banco Central, a instituição que o estado, a mídia dócil e os economistas defenderão enquanto respirarem.
O estado conseguiu persuadir a humanidade de que os seus próprios interesses são idênticos aos interesses dela. Conseguiu convencer a humanidade de que busca promover bem-estar dela, de que ele é o seu grande benfeitor; conseguiu convencer todos de estarmos contentes com o papel de súditos submissos.
Mas a nossa visão é diferente. A relação entre o estado e a população não é benigna; não se trata de uma relação entre um doador generoso e um receptor agradecido. A relação é de exploração, por meio da qual um grupo de aristocratas que se autoperpetuam no poder e que nada produzem vivem às custas da maioria que trabalha exaustivamente. Os seus programas, as suas burocracias e regulamentações não protegem o público, mas sim o espoliam. Os seus subsídios e protecionismos não promovem o chamado bem público; eles o solapam. Por que deveríamos esperar que o monopólio estatal da produção de dinheiro fosse uma exceção a esse padrão?
Como disse Friedrich August von Hayek, não é sensato crer que o estado tenha qualquer interesse em nos fornecer um “dinheiro bom”. O que o estado realmente quer é o monopólio da produção do dinheiro, de modo que ele possa distribuir favores e benesses para os seus grupos de eleitores favoritos. Não podemos ser obsequiosos em relação a essa postura.
O estado não faz concessões nem cede a contemporizações; temos de fazer o mesmo. Na luta pela liberdade, na luta contra o poder, são poucos aqueles que se oporão ao estado e à sabedoria convencional que ele nos adestrou a adotar. Vários intelectuais que antes se declaravam libertários se venderão. Menos ainda serão aqueles que rejeitarão por completo o estado e os programas dele. O charme exercido pelo poder é irresistível demais para os mais fracos. Devemos, portanto, ser aqueles poucos que labutarão divulgando ideias e se esforçando ao máximo para construir o futuro em que os poucos de hoje serão a maioria.