sexta-feira, 27 de março de 2020

Uma breve análise econômica e jurídica das extremas medidas restritivas impostas pelos governadores e prefeitos (Marcelo Werlang de Assis)




Diante da suposta ameaça à civilização humana provocada pela peste chinesa (“coronavírus”), governadores e prefeitos, auxiliados pelos seus burocratas, impuseram pesadíssimas restrições às atividades econômicas, permitindo que continuassem funcionando apenas aquelas atividades arbitrariamente consideradas “essenciais” (e, em algumas raras exceções, somente limitando o horário de funcionamento de atividades “não essenciais” — o que, por sinal, configura um contrassenso, pois diminui as oportunidades disponíveis para as pessoas comparecerem aos lugares, sendo aumentado o número de indivíduos por faixa de tempo).
Uma enorme parcela da população brasileira se viu impedida — sob a ameaça de multa, de perda de licenças (e de confisco de mercadorias) e de prisão — de obter receitas com as atividades econômicas “não essenciais” que antes desempenhavam. Um número elevado de empreendimentos de micro, pequeno e médio portes já sofreu graves danos financeiros.
A questão central é: essa proibição generalizada de atividades pode ser entendida como correta dos pontos de vista econômico e jurídico?

Do ponto de vista econômico

A distinção que se fez — entre atividades “essenciais” e atividades “não essenciais” — é puramente arbitrária e demonstra pleno desconhecimento de economia.
O valor é subjetivo — os seres humanos dão valor a coisas e experiências, e cada ser humano possui as suas próprias preferências. Aquilo que alguém considera “essencial” pode ser considerado “não essencial” por outra pessoa.
A divisão do trabalho significa a fragmentação crescente e contínua das atividades econômicas entre especialistas. Na prática, isso nada mais é do que o fenômeno da “terceirização”. A divisão do trabalho possibilita uma criação de riqueza — uma oferta de bens (produtos e serviços) — que um ser humano sozinho jamais conseguiria realizar. A divisão do trabalho — nos tempos atuais, repita-se, cada vez mais fragmentada — significa que todos dependem de todos, que todos se encontram interligados, que todos afetam todos. A complexidade da cadeia produtiva é colossal.
Os funcionários de um hospital, nas tarefas que desempenham, fazem uso de uma infinidade de bens (produtos e serviços) ofertados por uma miríade de outras organizações (cujas atividades, porém, são classificadas como “não essenciais”). Os caminhoneiros, nos percursos que realizam, utilizam aquilo que restaurantes de beira de estrada, borracharias e oficinas mecânicas oferecem (cujas atividades, porém, são classificadas como “não essenciais”). Os celulares dessas pessoas — importantíssimos instrumentos de trabalho e de comunicação — podem precisar dos serviços de profissionais de conserto (cujas atividades, porém, são classificadas como “não essenciais”).
A proibição de todas as atividades econômicas consideradas “não essenciais” passa, sim, a interferir no funcionamento das atividades econômicas consideradas “essenciais”.

Do ponto de vista jurídico

O ordenamento jurídico do estado brasileiro consagra o trabalho e a livre iniciativa como valores fundamentais — os quais, portanto, não podem ser obliterados pelas medidas de proteção da saúde. Deve haver uma coexistência entre o bem-estar físico (corpóreo) e o bem-estar econômico (material) da população.
Abaixo, são reproduzidos cinco trechos retirados do famoso livro “Teoria dos Princípios — Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos” (São Paulo: Malheiros Editores, 2006), do jurista Humberto Bergmann Ávila:

(1)
Com efeito, os princípios são definidos como normas imediatamente finalísticas, isto é, normas que impõem a promoção de um estado ideal de coisas por meio da prescrição indireta de comportamentos cujos efeitos são havidos como necessários àquela promoção. Diversamente, os postulados, de um lado, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso, estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que indiretamente prescrevem comportamentos. Rigorosamente, portanto, não se podem confundir princípios com postulados.
As regras, a seu turno, são normas imediatamente descritivas de comportamentos devidos ou atributivas de poder. Distintamente, os postulados não descrevem comportamentos, mas estruturam a aplicação de normas que o fazem. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 123)

(2)
Por exemplo, o postulado da proporcionalidade exige que as medidas adotadas pelo Poder Público sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 128)

(3)
O postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove o fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca. A aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 146)

(4)
O postulado da proporcionalidade não se confunde com a ideia de proporção em suas mais variadas manifestações. Ele se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamental (ais) afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).
Nesse sentido, a proporcionalidade, como postulado estruturador da aplicação de princípios que concretamente se imbricam em torno de uma relação de causalidade entre um meio e um fim, não possui aplicabilidade irrestrita. Sua aplicação depende de elementos sem os quais não pode ser aplicada. Sem um meio, um fim concreto e uma relação de causalidade entre eles não há aplicabilidade do postulado da proporcionalidade em seu caráter trifásico. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 149)

(5)
Vamos a um exemplo. O Poder Público, para proteger os consumidores, obriga os supermercados de uma determinada região a etiquetar todos os produtos vendidos em seus estabelecimentos. A medida serve de meio para promover um fim – qual seja, a proteção dos consumidores. A adoção da medida causa uma restrição ao direito de livre exercício da atividade econômica dos supermercados. Como a situação envolve uma relação de causalidade entre um meio e um fim concreto, tem aplicabilidade o postulado da proporcionalidade. Procedendo-se ao exame de adequação, pode-se concluir que os efeitos da medida adotada contribuem para a gradual realização do fim. Etiquetar os produtos contribui para proteger os consumidores. Pondo em prática o exame da necessidade, é plausível concluir pela inexistência de outro meio alternativo, se os meios disponíveis não são considerados igualmente adequados para proteger os consumidores. Os efeitos da implantação do código de barras promovem menos intensamente a proteção da maioria dos consumidores do que a obrigação de etiquetar cada produto. A obrigação de etiquetar os produtos é necessária. E, contrapondo-se as vantagens e as desvantagens da adoção da medida, pode-se chegar à conclusão de que, apesar de não haver outro meio igualmente adequado para proteger os consumidores, ainda assim o grau de restrição causado ao princípio do livre exercício da atividade econômica pela obrigação de colocar etiquetas em todos os produtos (custos administrativos, trabalho humano de etiquetar e novamente etiquetar quando os preços mudam, abandono do moderno sistema de código de barras) é desproporcional ao grau de promoção do princípio da proteção dos consumidores (proteção de uma minoria desatenta de consumidores em detrimento da média dos consumidores, que é protegida por outros meios já existentes). Enfim, a medida, apesar de adequada e necessária, é considerada desproporcional em sentido estrito. (Ávila, “Teoria dos Princípios”, 2006, p. 135 e 136)

As extremas medidas de restrição impostas pelos governadores e prefeitos são, em teoria, adequadas ao fim almejado (proteger o bem-estar físico da população com a diminuição da velocidade de propagação do patógeno e a preservação da capacidade de atendimento do sistema de saúde), mas desnecessárias  e desproporcionais em sentido estrito. (Atualização: agora, na metade de maio de 2020, está sendo constatado que o confinamento de várias pessoas em recintos fechados — os seus lares —, na verdade, está fomentando a contaminação. Além disso, ar puro e luz solar são essenciais à saúde.)
São desnecessárias porque existem meios mais brandos e menos invasivos, que mais bem preservam os valores fundamentais do trabalho e da livre iniciativa. A finalidade — a proteção da saúde da população — poderia ter sido alcançada com o isolamento de grupos de risco, com a imposição do uso de máscaras apropriadas, com a obrigatoriedade de desinfecção diária dos ambientes, com a limitação do número de pessoas em locais como restaurantes e lanchonetes.
São desproporcionais em sentido estrito porque as desvantagens — o desmantelamento da divisão do trabalho (da cadeia produtiva); os grandes prejuízos, as inúmeras falências, as demissões em massa; o desabastecimento de itens básicos (acompanhado do aumento dos preços deles) — são enormes diante de um patógeno cuja taxa de letalidade se demonstra baixa (apesar do seu grande poder de contágio) e cujas vítimas se encontram, na maioria, em idade avançada e/ou em situação debilitante por causa de outros problemas de saúde.

Conclusão

Os políticos, assim como os burocratas que trabalham para eles, certamente estão gostando dessa situação — pois os seus poderes aumentaram em alcance e tamanho. Ainda que as receitas tributárias estejam minguando (visto que os “fatos geradores” que dão gênese às obrigações dos contribuintes não estão ocorrendo), os governadores e os prefeitos com certeza estão se regozijando com a satisfação da libido dominandi (o desejo de mandar) que tanto possuem; as suas naturais tendências tirânicas encontraram na peste chinesa (“coronavírus”) a justificativa perfeita para elevar o controle que impõem à população. E esses bandidos, infelizmente, ainda serão vistos como “supremos heróis salvadores” por ela.

6 comentários:

  1. Muito bem elaborado, o artigo do Marcelo dá uma pincelada nas barbaridades que certas autoridade públicas estão cometendo, dos pontos de vista econômico e jurídico. Recomendo a leitura!

    ResponderExcluir
  2. Marcelo
    Penso igualmente a você. Tenho um restaurante e simplesmente não sei o que vai acontecer depois. E tem uma agravante que o governo afirmou no dia 17.03 que seria fale news que ele fecharia o setor. Fiz compras dias 17 e 18 e na noite do dia 19 saiu um ato em edição extra proibindo a abertura do comércio. Estou com os boletos pra pagar. E agora? E pouco dinheiro que tínhamos usamos para pagar os credores. Mas a conta de luz e água não vai dar pra pagar. A Cia elétrica está mandando para o Serasa nossos nomes o que irá dificultar qualquer possibilidade de crédito bancário. O que fazer? O que me estranha que os serviços públicos até agora não foram chamados a fazerem sacrifício. Uma sugestão: um corte de 50% dos valores dos cargos públicos e um corte de 50% das verbas de gabinete não seria um princípio?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, amigo!
      Sinto muito pela situação em que você se encontra. Milhares de outros brasileiros encontram-se também nessa horrível situação.
      É extremamente preocupante.
      Infelizmente, não vislumbro quaisquer iniciativas de políticos e burocratas para realizar sacrifícios nos seus proventos. Essa gente deseja que o bem-bom continue.
      A crise no Brasil só está começando. Se a supressão das atividades econômicas permanecer, tudo piorará cada vez mais.

      Excluir
  3. Excelente artigo, Marcelo, muito boa análise do ponto de vista econômico e jurídico, por favor continue escrevendo.
    Irei recomendar o artigo para a leitura narrada do Erick, do canal Etoempire.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Agradeço muito pelas suas palavras!

      Sim, seguirei escrevendo!

      Abraço!!!

      Excluir