quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Afinal, o que é este tal de anarcocapitalismo? (Jeffrey A. Tucker)


Confira o texto aqui (site do Instituto Rothbard Brasil). 

Clique aqui para baixar o texto em formato PDF.

***

A vitória presidencial de Javier Milei na Argentina coloca na chefia de estado o primeiro autoproclamado “anarcocapitalista” da história moderna ou provavelmente a primeira pessoa a sequer vencer uma eleição nesse nível a se identificar com o termo.

Nesse meio tempo, muitas pessoas me perguntaram exatamente o que é isso. Então aqui está a explicação como eu a entendo.

Central para a ideia é que a sociedade não precisa de uma entidade entrincheirada de compulsão e coerção legalizada/institucionalizada chamada de estado para que desfrute da aplicação dos direitos de propriedade e dos contratos, assim como da defesa e da sociedade comercial em geral. A fusão dos termos anarquismo e capitalismo não configura um plano para a ordem social, mas sim uma previsão daquilo que aconteceria numa comunidade civilizada na ausência do estado.

Mito um: não é “de direita”, ao contrário do que dizem o New York Times, o Guardian e mil outros veículos. A “direita” na Prússia era pela unidade entre a Igreja, o estado e os negócios. A “direita” na França era pelo direito divino da monarquia de governar. A “direita” nos Estados Unidos se encontra em todos os lugares na história americana, mas dificilmente se mostra coerente em prol da liberdade como um princípio primeiro da vida sociopolítica. A noção de “anarcocapitalismo” está fora do binário esquerda/direita.

Mito dois: a parte “anarco” nada tem a ver com Antifa ou caos. O uso do termo anarquismo, aqui, significa apenas a abolição do estado e a substituição dele por relações de propriedade, por ação voluntária, por direito privado e por execução de contratos conforme fornecida pela livre iniciativa. Não significa ausência de lei, de normas; significa o direito como uma extensão da volição humana e da evolução social em vez de uma imposição a partir de cima. A ordem é a filha da liberdade, não a sua mãe, disse Proudhon; e os anarcocapitalistas concordariam.

Mito três: nem todo mundo que proclama ser “anarcocapitalista” fala por essa escola de pensamento, nem de longe. A designação representa um ideal amplo, com milhares de aplicações iterativas e uma enorme diversidade de pontos de vista internos, como em qualquer outro campo ideológico. Estou ciente de alguns que se colocaram a favor dos confinamentos COVID e da vacinação compulsória, assim como de outros que continuam encontrando maneiras de justificar guerras e esquemas de redistribuição em massa, por exemplo. Milei, assim, não deve ser responsabilizado por cada coisa já dita ou escrita por um adepto autodenominado.

O termo tem origem na obra do economista americano (e o meu amado mentor) Murray Rothbard, que foi fortemente influenciado no seu libertarianismo pela romancista Ayn Rand na década de 1950. (Um dos cachorros domésticos de Milei recebeu o nome de Murray.) Porém, à medida que Rothbard examinava de perto a obra de Rand, ele passou a suscitar dúvidas sobre a instituição que Rand insistia ser necessária e essencial ou seja, o próprio estado. Se devemos ter direitos de propriedade, por que só o estado possui a permissão de violá-los? Se devemos ter autopropriedade, por que o estado é a única instituição autorizada a esmagar e atropelar as pessoas por meio do alistamento militar (conscrição), da segregação e de outras formas? Se buscamos a paz, por que queremos um estado para incitar a guerra? E assim por diante.

Na visão de Rothbard, uma coerente regra na sociedade que proíba a agressão contra pessoas e bens teria de se aplicar também ao próprio estado o qual tem sido, historicamente, o violador de direitos humanos mais socialmente danoso que existe. Toleramos que os estados defendam os nossos direitos apenas para depois descobrir que o estado é a principal ameaça aos nossos direitos. Essa forma de pensar também observa que ninguém jamais criou uma tecnologia ou um sistema que tenha, com sucesso, mantido o estado em contenção após ele ter sido criado. (Muito recomendado para uma compreensão mais profunda: o opúsculo “Anatomia do Estado”, de Rothbard; download gratuito.)

Muitos anarquistas da esquerda socialista fizeram observações semelhantes, mas o rodopio intelectual de Rothbard foi de uma previsão analítica sobre o que tomaria o lugar do estado na ausência dele. Rothbard dizia que uma sociedade sem estado não seria uma comunidade governada pela perfeita partilha de recursos e pela mesmice igualitária muito menos por alguma elevação mágica para além da natureza humana, como falavam os utopistas de esquerda. Em vez disso, essa sociedade seria de propriedade, comércio, divisão do trabalho, investimento, tribunais privados, mercados de ações, propriedade privada do capital e tudo o mais. Em outras palavras: uma economia livre prosperaria mais que nunca sem o estado; e veríamos uma liberdade ordenada conduzida ao seu mais alto nível possível de realização.

Tenha em mente que levar adiante essa ideia colocou Rothbard em conflito com praticamente todos, dos marxistas aos trotskistas, passando pelos randianos, pelos conservadores e pelos liberais clássicos que acreditavam que os estados sejam necessários para os tribunais, o direito e a segurança. Isso inclusive o colocou em desacordo com outro dos seus mentores, o próprio Ludwig von Mises, cuja única concepção de anarquismo provinha dos círculos intelectuais europeus: eles, certamente, encontravam-se entre as mentes menos responsáveis do continente.

O anarquismo de Rothbard era americano até o âmago: mais influenciado pelos tempos coloniais que pela Guerra Civil Espanhola. Ele acreditava que as comunidades poderiam administrar a si próprias sem um senhor supremo com o poder de tributar, inflar a moeda, recrutar e assassinar. Ele acreditava que os mercados e a criatividade da cooperação humana pacífica sempre propiciariam melhores resultados que instituições remendadas pelas elites e impostas pela compulsão. Isso se aplica inclusive aos tribunais, à segurança e ao direito, todos os quais ele acreditava serem mais bem fornecidos por meio das forças de mercado dentro da estrutura das normas universais que regem a propriedade e a ação humana.

Rothbard, nisso, estava revisitando um debate da França do século XIX. Frédéric Bastiat (1801–1850) foi um grande economista e liberal clássico que produziu alguns dos escritos mais convincentes da sua geração em prol da liberdade ou até mesmo de todos os tempos. Mas ele sempre manteve na sua mente a crença na necessidade de algum estado para fazer o sistema continuar funcionando de modo que a sociedade não caísse no caos. Quem se opôs a Bastiat nessa questão foi o intelectual menos conhecido Gustave de Molinari (1819–1912), que escreveu que todas as funções necessárias para as operações sociais sob a liberdade podem ser fornecidas através das forças do mercado. De muitas maneiras, Molinari foi o primeiro “anarcocapitalista” verdadeiro, embora nunca tenha usado esse termo.

Certamente, teorias de alto nível originadas nos salões de Paris durante a Belle Époque ou nos círculos intelectuais de Nova York na década de 1950 são uma coisa. Mas colocar tudo isso em prática é outra. Aqui é onde o teste de Milei realmente está. Nesse ponto, a sua teoria é apenas isso, talvez uma inspiração para dar coragem de convicção, mas dificilmente um projeto. Ele enfrenta um enorme estado administrativo que está profundamente entrincheirado, uma moeda colapsada, um sistema judicial corrompido, um parlamento hostil, uma mídia inimiga, além de cem anos de passivos previdenciários flagrantes.

Como um ser humano assume tudo isso? Nós realmente não sabemos a resposta para essa pergunta. Nenhum líder de uma nação democrática ocidental desenvolvida jamais tentou uma transformação em grande escala de um establishment corrompido a esse ponto. Nem Reagan nem Thatcher, por mais abrangentes que fossem as suas reformas, sequer cortaram o orçamento em geral; muito menos aboliram de fato agências inteiras. Eram reformadores dentro da estrutura. Milei está sendo solicitado a fazer algo nunca feito antes, em meio a uma grave crise para a nação.

Você não precisa aceitar totalmente o anarcocapitalismo para apreciar o impulso e a esperança que se encontram aqui. Em quem você confiaria mais para derrotar o estado — em alguém que acredita fortemente em algumas características dele ou em alguém que se opõe à estrutura inteira, abrangendo tanto a essência dela quanto as suas inúmeras ramificações? Isto é claro: essa orientação ideológica irá infundir em qualquer estadista uma oposição ardente a toda corrupção, a toda compulsão, a toda extorsão, a todo golpe promovido pela elite administrativa. A diretriz anarcocapitalista, pelo menos, fornece uma luz orientadora que poderia culminar em mais liberdade para todos.

São impensáveis as forças internas e externas aliadas contra o seu sucesso. E ele, Milei, está correndo contra o relógio. Em um ano, toda a mídia da elite estará gritando que o “anarcocapitalismo” na Argentina fracassou. Prometo. É nesse nível de absurdo que as coisas chegaram.

Digamos que Milei seja redirecionado pelos globalistas neoliberais e busque reformas que apenas acompanhem a cartilha neoliberal do final do século XX e depois de 2008. Isso pode ser atribuído ao anarcocapitalismo? Com certeza, não.

O anarcocapitalismo não está dando liberdade às maiores corporações sob controle oligárquico para saquear e lucrar às custas do povo. Não significa “privatizar” funções do estado que não deveriam existir em primeiro lugar. Não significa vender recursos do estado para comparsas e bandidos. Não significa conceder contratos de péssimos serviços públicos ao maior licitante. Não significa permitir que as empresas de tecnologia se tornem parceiras do estado na vigilância e no controle dos cidadãos. Tudo isso são corrupções de uma ideia mais pura de capitalismo. E o anarcocapitalismo certamente não está cumprindo os ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, do Fórum Econômico Mundial (FEM), muito menos do Departamento de Estado dos EUA.

Existem todas as razões para ficar animado com a vitória de Milei quando muito, apenas porque ela está mostrando que há uma demanda populista por reformas radicais e que isso pode, de fato, ganhar eleições. Esperemos que os candidatos do Partido Republicano nos Estados Unidos estejam assistindo e ouvindo. Eles parecem ter retrocedido a discursos enlatados e respostas roteirizadas, que só entediam e aborrecem um público que está farto do status quo e pronto para alguém com a visão e a energia de um Milei se sobressair.

Milei pode ser apenas um dos muitos mais que virão. Ele pode fracassar. Mas não mais pode ser duvidada a necessidade desesperada por reformas e revoluções fundamentais e profundas em todas as democracias industrializadas para recolocar o povo no comando. Aliás, se, depois de um esforço valente, Milei fracassar, pelo menos teremos tido, conforme disse Rothbard certa vez, um “feriado glorioso”, mas temporário, do status quo político e administrativo com que lidamos todos os dias.

Existem todas as razões para acreditar que Milei seja apenas o começo de uma nova tendência que pode se espalhar pelo mundo inteiro. As pessoas estão enfastiadas e prontas para uma nova direção radical. Algo tem de ser feito para sustar a marcha implacável das forças da tirania nas nações ocidentais.


Nenhum comentário:

Postar um comentário