Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis
Um banco central efetua três funções significativas para o sistema bancário e para o governo:
(1) ele serve de emprestador de última instância — o que significa, na prática, a garantia de que sempre imprimirá dinheiro para socorrer as grandes instituições financeiras;
(2) ele coordena, em conjunto com os bancos, o processo de inflação da oferta monetária, estabelecendo uma taxa uniforme à qual os bancos devem expandir o crédito, fazendo dessa forma com que o sistema bancário de reservas fracionárias seja menos instável e mais lucrativo do que seria sem um banco central — isso explica, diga-se de passagem, o motivo pelo qual os próprios bancos sempre clamaram por um banco central;
(3) ele permite, por meio da sua criação de dinheiro, que o governo possa financiar as suas operações de maneira muito mais barata e sorrateira do que poderia caso não existisse um banco central.
Nenhum governo chegou a dizer: “Queremos gastar mais, portanto temos de abolir o banco central.” Ou: “Queremos gastar mais, então devemos acabar com a inflação e com o papel-moeda fiduciário de curso forçado.” Essa postura, por si só, já é um bom indicativo de toda a restrição que uma moeda sólida impõe sobre os governos. Metais preciosos não podem ser criados do nada — e é por essa razão que os governos e os intelectuais governistas se exasperam à simples menção de um sistema monetário baseado neles.
O governo pode aumentar as suas receitas de três maneiras. A tributação é o meio mais visível — e, por isso mesmo, o mais limitado. Não é possível aumentar impostos indefinidamente, sob o risco de incitar um levante popular. O governo também pode tomar emprestado o dinheiro de que necessita, mas tal medida também acaba se tornando muito visível para o público, pois conduz a taxas de juros maiores — à medida que o governo passa a competir por uma quantia limitada de crédito disponível, este se torna cada vez mais escasso para os outros tomadores de empréstimo; consequentemente, os juros sobem.
Criar dinheiro do nada, a terceira opção, é o método preferível dos governos, uma vez que o processo por meio do qual a classe política desvia recursos da sociedade através da inflação é muito menos direto e óbvio do que nos casos da tributação e da tomada de empréstimos. Antigamente, os reis cortavam as bordas das moedas metálicas (expediente esse chamado de “clipagem” — “coin-clipping”, em inglês) e utilizavam esses refugos para fundir novas moedas, provocando assim um aumento da oferta monetária. Tão logo descobriram esse truque, os governos passaram a guardar ciosamente o poder de manipular a moeda. Mises certa vez disse que, se o Banco da Inglaterra — criado em 1694 — já existisse e estivesse à disposição do rei Charles I durante a Guerra Civil inglesa da década de 1640, o monarca poderia ter esmagado as forças parlamentares ordenadas contra ele, e a história inglesa teria sido bastante diferente.
Juan de Mariana, o jesuíta espanhol que escreveu tratados no período que abrange o final do século XVI e o início do século XVII, é mais bem conhecido no campo da filosofia política por ter defendido o regicídio na sua obra de 1599, De rege et regis institutione [“Sobre o rei e a instituição real”]. Estudiosos frequentemente pressupõem que foi em decorrência dessa provocativa afirmação que o governo espanhol o aprisionou por um tempo. Mas a verdade é que foi o seu Tratado sobre a Alteração da Moeda — o qual condenava a inflação monetária como algo imoral e maléfico — que lhe trouxe problemas.
Apenas pense nisso. Dizer que a população tem o direito de matar o rei era uma coisa relativamente aceitável. Agora, atacar diretamente a inflação, a força vital do regime? Isso já era ir longe demais.
Naquela época, se o governo incorresse em gastos adicionais e decidisse financiá-los parcialmente pela manipulação da moeda, o processo era direto e não muito difícil de entender. Atualmente, a sequência de eventos é um pouco mais complicada, porém não fundamentalmente diferente. Hoje, se um governo necessita de mais dinheiro, ele não irá simplesmente imprimir dinheiro e utilizá-lo para cobrir essa diferença. O processo não é tão grosseiro dessa forma. No entanto, se o examinarmos mais detidamente, veremos que se trata essencialmente da mesma coisa.
Os bancos centrais, criados por todos os governos ao redor do mundo, permitem que se possa gastar mais do que se arrecada em impostos. Tomar empréstimos permite aos governos gastarem mais do que coletam em impostos, mas tal medida, por si só, conduziria a um inevitável aumento dos juros — o que, por sua vez, provocaria um perigoso desconforto no público. Sendo assim, o esquema atual de inflação é muito mais engenhoso. Em vez de dar o dinheiro diretamente para o governo, o Banco Central cria dinheiro eletrônico e o injeta no sistema bancário, provocando assim uma redução nos juros. Ato contínuo, os bancos utilizam esse dinheiro recém-criado para comprar títulos do Tesouro. Dessa maneira, os juros não sobem — e, em consequência disso, os efeitos dos empréstimos governamentais sobre os juros são ocultados.
Logo, os bancos centrais — ao criar dinheiro, injetá-lo no sistema bancário e, com isso, afetar os juros — servem aos propósitos dos governos. Portanto, essencialmente, o Banco Central imprime dinheiro e o entrega ao governo, mas a maneira como ele faz isso não é tão direta e óbvia.
Conforme explicado, o governo federal vende os seus títulos para o sistema bancário a preços artificialmente altos (o que correspondentemente significa juros baixos) porque os compradores da sua dívida sabem que poderão revender tais títulos ao Banco Central — é assim, comprando os títulos do Tesouro em posse dos bancos, que o Banco Central injeta dinheiro no sistema bancário. Sim, o governo federal tem de pagar juros sobre esses títulos que agora estão em posse do Banco Central, mas o que ocorre é que, no final do ano, o Banco Central remete esse dinheiro de volta para o Tesouro, retendo apenas o suficiente para cobrir as suas despesas. É isso que ocorre com o dinheiro dos juros. E, caso você esteja pensando que o governo federal ao menos precisa pagar o principal da dívida em posse do Banco Central, a verdade é que não. O governo pode rolar a sua dívida pendente quando ela estiver vencendo — e ele faz isso emitindo um título novo para pagar o principal do título antigo.
Por meio desse processo convoluto — não coincidentemente, um processo sobre o qual o público em geral quase nada sabe a respeito —, o governo federal se torna capaz de fazer o equivalente a imprimir dinheiro e gastá-lo. Ao passo em que todas as pessoas e empresas têm de adquirir recursos gastando o dinheiro que ganharam em atividades produtivas — em outras palavras, elas primeiro têm de produzir algo para a sociedade para só então poderem consumir —, o governo pode adquirir recursos sem antes ter produzido algo. A criação de dinheiro por meio do monopólio estatal se torna, dessa maneira, apenas mais um mecanismo através do qual a relação de exploração do governo sobre a população se perpetua.
E, como o Banco Central possibilita ao governo federal ocultar os reais custos de todos os seus gastos, a realidade é que o Banco Central fornece um incentivo para que o governo incorra em gastos adicionais em absolutamente todas as áreas, criando infinitos ministérios, programas, subsídios, regulamentações e agências reguladoras, sem que o público sinta direta e imediatamente os custos desses programas.
A expansão monetária é especialmente útil para um governo que quer gastar mais com programas eleitoreiros, mas não deseja aumentar impostos nem tolerar um aumento de juros decorrente do seu maior volume de empréstimos para financiar essa gastança. É por isso que toda e qualquer conversa sobre banco central independente não passa de espuma. É racionalmente impossível imaginar um banco central mantendo uma postura monetária rígida e austera quando todo o regime — assim como todo o meio acadêmico e toda a mídia — está demandando estímulos e juros baixos.
Por outro lado, embora seja verdade que um padrão-ouro restrinja a ação dos governos, também é verdade que os governos nunca tiveram dificuldade em arrumar desculpas e pretextos para sair do padrão-ouro. Exatamente por essa razão, o padrão-ouro por si só não representa uma restrição suficiente sobre as ambições de algum governo.
E, exatamente por essa razão, ao olharmos para o futuro, temos de abandonar toda timidez nas nossas propostas para uma reforma monetária. Não queremos um padrão-ouro-câmbio, como aquele que existiu sob o sistema de Bretton Woods. Também não queremos um arranjo monetário em que o preço do ouro seja utilizado como um instrumento de calibragem para auxiliar a autoridade monetária nas suas decisões sobre a quantidade de dinheiro que deva criar. Sequer desejamos a restauração do padrão-ouro clássico, por maiores que sejam os seus méritos.
No século XIX, os teóricos monetários defensores da moeda sólida cunharam a maravilhosa expressão “separação entre sistema bancário e estado”. Isso sem dúvida seria um bom começo. Mas queremos mais. Aquilo de que necessitamos hoje é: uma total separação entre moeda e estado.
Existem algumas características que tornam o dinheiro um bem singular dentre todos os bens de uma economia. Em primeiro lugar, o dinheiro é valorado não pelas suas características intrínsecas, mas pelo seu uso nos processos de troca indireta. Em segundo lugar, ao contrário de todos os outros bens, o dinheiro não é consumido, mas sim passado adiante de uma pessoa para outra — o que significa que o dinheiro não é um bem de consumo nem um bem de produção. Finalmente, todos os outros produtos e serviços da economia possuem os seus preços expressos em termos desse bem.
No entanto, apesar dessas características singulares, não há absolutamente nada em relação ao dinheiro — aliás, nem em relação a qualquer outro produto ou serviço — que possa nos fazer crer que a sua oferta deva ser efetuada pelo governo e somente por ele. O dinheiro constitui a metade de toda transação de mercado. As pessoas que dizem acreditar na economia de mercado, mas que ainda assim estão dispostas a conceder ao estado a custódia desse bem crucial, deveriam repensar essa postura inexplicável e incoerente.
Intervencionistas frequentemente alegam que, se um determinado bem é muito importante, então a sua produção não pode ser deixada a cargo das forças do livre mercado. A réplica dos defensores do livre mercado vira esse argumento do avesso: quanto mais importante for um bem, mais essencial é que o governo fique o mais distante possível dele, deixando a sua produção inteiramente a serviço da livre concorrência.
Em nenhuma outra área essa afirmativa é tão crucial e verdadeira quanto na questão do dinheiro. Como disse Ludwig von Mises certa vez, a história do dinheiro é a história dos esforços governamentais para desvalorizá-lo. O controle estatal sobre a moeda causou apenas: inflação monetária, empobrecimento da sociedade em relação ao estado; bolhas financeiras, ciclos econômicos devastadores; consumo de capital (visto que a inflação falsifica a contabilidade de lucros e prejuízos); risco moral; e, acima de tudo, a expropriação da população de um modo que ela é incapaz de entender. É essa expropriação silenciosa através da inflação monetária que possibilita o contínuo agigantamento dos estados e da sua tirania ao redor do mundo; e são todas essas agressões combinadas que constituem um convincente compêndio popular contra o atual sistema e a favor de um substituto monetário gerido pelas forças da livre concorrência.
A expansão dos poderes do estado e a máquina de criar dinheiro, em suma, sempre estiveram intimamente relacionadas. É inútil denunciar o agigantamento do estado e as suas distorções morais sem, ao mesmo tempo, atacar o indispensável mecanismo que possibilita toda essa expansão. Se realmente queremos nos opor ao estado e a todas as suas manifestações — a sua gastança, o seu endividamento; a sua crescente tirania, a sua burocracia, as suas regulamentações; a sua rede de proteção aos poderosos com boas conexões políticas, os seus subsídios que distorcem o livre mercado; e assim por diante —, devemos apontar o dedo para a fonte que possibilita tudo isso: o Banco Central, a instituição que o estado, a mídia dócil e os economistas defenderão enquanto respirarem.
O estado conseguiu persuadir a humanidade de que os seus próprios interesses são idênticos aos interesses dela. Conseguiu convencer a humanidade de que busca promover bem-estar dela, de que ele é o seu grande benfeitor; conseguiu convencer todos de estarmos contentes com o papel de súditos submissos.
Mas a nossa visão é diferente. A relação entre o estado e a população não é benigna; não se trata de uma relação entre um doador generoso e um receptor agradecido. A relação é de exploração, por meio da qual um grupo de aristocratas que se autoperpetuam no poder e que nada produzem vivem às custas da maioria que trabalha exaustivamente. Os seus programas, as suas burocracias e regulamentações não protegem o público, mas sim o espoliam. Os seus subsídios e protecionismos não promovem o chamado bem público; eles o solapam. Por que deveríamos esperar que o monopólio estatal da produção de dinheiro fosse uma exceção a esse padrão?
Como disse Friedrich August von Hayek, não é sensato crer que o estado tenha qualquer interesse em nos fornecer um “dinheiro bom”. O que o estado realmente quer é o monopólio da produção do dinheiro, de modo que ele possa distribuir favores e benesses para os seus grupos de eleitores favoritos. Não podemos ser obsequiosos em relação a essa postura.
O estado não faz concessões nem cede a contemporizações; temos de fazer o mesmo. Na luta pela liberdade, na luta contra o poder, são poucos aqueles que se oporão ao estado e à sabedoria convencional que ele nos adestrou a adotar. Vários intelectuais que antes se declaravam libertários se venderão. Menos ainda serão aqueles que rejeitarão por completo o estado e os programas dele. O charme exercido pelo poder é irresistível demais para os mais fracos. Devemos, portanto, ser aqueles poucos que labutarão divulgando ideias e se esforçando ao máximo para construir o futuro em que os poucos de hoje serão a maioria.