“Government is essentially the negation of liberty.” — Ludwig von Mises (“O governo é essencialmente a negação da liberdade.”) “The institution of the state establishes a socially legitimized and sanctified channel for bad people to do bad things.” — Murray N. Rothbard (“A instituição do estado estabelece um canal legitimado e ungido para pessoas más fazerem coisas ruins.”) “[The state is] an institution run by gangs of murderers, plunderers, and thieves, surrounded by willing executioners, propagandists, sycophants, crooks, liars, clowns, charlatans, dupes, and useful idiots — an institution that dirties and taints everything it touches.” — Hans-Hermann Hoppe (“[O estado é] uma instituição conduzida por gangues de assassinos, saqueadores e ladrões, tendo à sua volta dispostos executores, propagandistas, patifes, vigaristas, mentirosos, palhaços, charlatões, imbecis e idiotas úteis — uma instituição que suja e macula tudo que toca.”) “Socialismo es todo sistema de agresión institucional contra el libre ejercicio de la acción humana o función empresarial.” — Jesús Huerta de Soto

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A teoria marxista da exploração não faz nenhum sentido (Juan Ramón Rallo)




Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

É sabido que Marx popularizou a ideia de que os capitalistas exploram os trabalhadores apropriando-se de uma parte do seu trabalho. O argumento, quando despido de todo o seu linguajar pomposo, é relativamente simples: de acordo com Marx, as mercadorias produzidas pelos trabalhadores são vendidas por um valor que é igual ao tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las; sendo assim, num mundo justo, cada trabalhador deveria ganhar um salário equivalente ao fruto integral do seu trabalho, isto é, equivalente ao valor exato da mercadoria que produziu. Em consequência, o capitalista, que não efetua trabalho físico, retém para si uma parte do valor desses bens que os trabalhadores produziram, conseguindo fazê-lo graças ao seu monopólio dos meios de produção (esses meios de produção, vale dizer, são bens complementares indispensáveis aos trabalhadores, sem os quais eles nada conseguiriam produzir).
Falando mais especificamente: o capitalista remunera o trabalho com $100 (D); esse trabalho gera mercadorias (M); e essas mercadorias são vendidas por $120 (D’). De acordo com Marx, isso só é possível de ocorrer porque há uma parte do trabalho que não foi remunerada pelo capitalista (D’ menos D), mas que de fato produziu mercadorias com um valor de troca.
Essa diferença é justamente a mais-valia, que é a mensuração exata da “exploração laboral” — ou seja, o trabalhador prestou um serviço para o capitalista e não obteve a devida remuneração.
A solução de Marx? Confiscar os meios de produção da burguesia e repassá-los aos trabalhadores para que possam reter o produto integral do seu trabalho sem que haja intermediários capitalistas que se apropriam de parte do suor do seu rosto.
Existem vários problemas com essa teoria marxista. Em primeiro lugar, ela parte do princípio de que todo o valor de troca de uma mercadoria depende exclusivamente do trabalho incorrido na sua produção (e não da sua utilidade marginal); o fato de que o valor de um bem seja totalmente subjetivo é ignorado pela teoria. Há também uma questão ainda mais problemática, que é a natureza distorcida que Marx atribui ao capital: ele assume que o valor do capital (por exemplo, o valor de uma máquina utilizada na produção de uma mercadoria) também é determinado pelo trabalho que foi incorrido na sua produção; e assume que o valor desse capital se transforma, em função da sua depreciação, no valor da mercadoria final. Trata-se de uma espécie de contabilidade de custos que se dá de acordo com o tempo de trabalho utilizado.
Eis um exemplo dessa teoria. Se uma impressora de livros tem um preço de 100 onças de ouro (porque o tempo de trabalho necessário para fabricá-la foi equivalente a 100 onças de ouro) — e supondo que ela possa imprimir 1.000 livros —, então o valor que ela imputará a cada livro será, segundo a teoria, de 0,1 onça de ouro.
No entanto, na prática, as coisas funcionam exatamente ao contrário: justamente pelo fato de que os consumidores estejam dispostos a pagar pelo menos 0,1 onça de ouro por cada livro, a impressora poderá ter um valor de mercado de 100 onças de ouro. Se, porém, os consumidores passarem a desejar menos livros impressos e passarem a desejar mais livros eletrônicos, então essa mesma impressora — ainda que o tempo de trabalho socialmente necessário para fabricá-la seja o mesmo; ainda que os consumidores sigam demandando livros impressos (só que agora em menor quantidade) — irá se depreciar enormemente.
Estabelecida a correta relação entre o preço dos bens de consumo e o preço dos bens de capital, a questão seguinte passa a ser: visto que uma impressora pode imprimir durante os próximos dez anos 1.000 livros com um valor de mercado de 0,1 onça de ouro cada um, por que então a impressora jamais custará 100 onças de ouro, mas sim muito menos?
Ignoremos os eventuais custos subjacentes, pois não é aí que se encontra a dificuldade, e nos concentremos na questão principal: por que ninguém pagaria hoje 100 onças de ouro por um ativo apenas para receber de volta, ao longo dos próximos dez anos, essas mesmas 100 onças?
Ou de maneira ainda mais completa: por que ninguém pagaria hoje 100 onças de ouro por um ativo apenas para receber de volta (ou talvez nem mesmo receber nada), ao longo dos próximos dez anos, essas mesmas 100 onças?
A resposta é simples: porque 100 onças de ouro hoje não têm o mesmo valor que 100 onças de ouro no futuro. As 100 onças de ouro que você  possui hoje são muito mais valiosas que as 100 onças de ouro que você talvez venha a possuir no futuro.
As onças de ouro em sua posse hoje representam uma capacidade de satisfazer imediatamente eventuais necessidades que possam surgir; ao passo em que as onças de ouro a serem eventualmente recebidas apenas no futuro (e existe a chance de que isso nem ocorra) não conferem essa mesma segurança, muito menos essa mesma capacidade. 
Uma coisa é gastar 100 onças de ouro hoje adquirindo bens de consumo; outra coisa, completamente distinta, é gastar essas mesmas 100 onças num investimento que nos permitirá recuperá-las apenas ao longo dos anos. Sendo assim, o lógico é que compremos a impressora hoje por, digamos, 90 onças de ouro com o intuito de receber 100 onças ao longo dos próximos dez anos — sempre correndo o risco de que tal retorno possa não se concretizar.
Todavia, se o capitalista compra por 90 para receber 100, então ele está obtendo mais-valia. Só que essa mais-valia não está vinculada à exploração do trabalhador, mas sim ao tempo pelo qual o capitalista tem de esperar para auferir essa receita e ao risco que ele tem de assumir ao incorrer nesse processo produtivo. Dito de outra maneira: assim como a mão-de-obra é um fator de produção, o tempo e o risco também o são (se não estamos dispostos a esperar e a assumir riscos, não há como haver produção, por maior que seja a quantidade de trabalho abstrato em que incorramos).
Dado que o capital que é adiantado na forma de salários e na forma de maquinário para os trabalhadores supõe também uma espera e uma assunção de riscos para o capitalista, não seria mais correto dizer que a “mais-valia” do capitalista advém não de um assalto ao trabalhador, mas sim da remuneração desses fatores de produção (tempo e risco)?
Ademais, conforme Marx, bens que requerem o mesmo tempo de trabalho para serem produzidos — seja o tempo de trabalho prestado diretamente pelo trabalhador ou o tempo de trabalho incorrido na fabricação dos meios de produção utilizados — deverão possuir o mesmo valor de troca e, portanto, o mesmo preço. (Vale notar que, na teoria de Marx, preço e valor de troca só coincidem quando os trabalhadores são donos dos meios de produção.) Mas isso simplesmente não faz nenhum sentido.
Suponha que, para a produção de 100.000 toneladas de trigo, sejam necessários 50 anos de trabalho; e que, para a construção de uma casa, também sejam necessários 50 anos de trabalho. De acordo com Marx, desconsiderando-se oscilações de curto prazo, ambos os produtos deveriam ter o mesmo preço — por exemplo, 1.000 onças de ouro.
Logo, se um trabalhador tem 100.000 toneladas de trigo — e outro trabalhador, uma casa —, ambos poderão trocar esses bens entre si. Entretanto, a questão essencial é outra: será que devemos supor que o trabalhador em posse das 100.000 toneladas de trigo esteja disposto a trocá-las pelo direito de receber uma casa daqui a 50 anos?
(Lembre-se de que, conforme Marx, a transação é idêntica: o que está sendo trocado são apenas tempos de trabalho. Contudo, num caso, o fruto de trabalho de 50 anos — 100.000 toneladas de trigo — já está disponível; no outro, a pessoa terá de esperar 50 anos para receber o seu bem.)
A resposta é um óbvio não. Uma coisa é uma casa já produzida ser trocada por 100.000 toneladas de trigo também já produzidas. Isso pode perfeitamente ocorrer. Outra coisa, completamente distinta, é imaginar que essas 100.000 toneladas de trigo serão trocadas hoje por uma casa que só estará disponível daqui a 50 anos. Tal troca simplesmente não ocorrerá, pois possuir uma casa hoje não tem o mesmo valor que possuir uma casa somente daqui a 50 anos.
Apenas estaremos dispostos a comprar a promessa de entrega da moradia se obtivermos um desconto muito grande no seu preço. Por exemplo, se uma casa já construída vale 1.000 onças de ouro, uma casa a ser entregue somente daqui a 50 anos valerá, digamos, 200 onças de ouro. Essa mais-valia (pagar 200 onças hoje para receber 1.000 onças em 50 anos) é exatamente a taxa de juros (matematicamente, equivale a uma taxa anual média de 2,8%).
Utilizando esse mesmo raciocínio, podemos concluir que os capitalistas adiantam bens presentes (salários) aos trabalhadores em troca de receberem, quando o processo de produção estiver finalizado, bens futuros. Existe necessariamente uma diferença de valor entre os bens presentes dos quais os capitalistas abrem mão e os bens futuros que eles receberão (se é que receberão). E essa diferença de valor é a mais-valia. A mais-valia, portanto, não é a apropriação de um tempo de trabalho não remunerado, mas sim o juro derivado do tempo de espera e do risco assumido até que o processo produtivo esteja concluído.
São muitas as pessoas que não entendem corretamente esse conceito de que os capitalistas adiantam bens presentes para receberem, após muito tempo, bens futuros. No entanto, basta verificar os balancetes de qualquer empresa para verificar esse fenômeno. Por exemplo, a General Electric investiu (adiantou) US$685 bilhões para recuperar, na forma de fluxo de caixa anual, aproximadamente US$35 bilhões. Ou seja, os capitalistas da GE abriram mão de US$685 bilhões (e do seu equivalente em bens de consumo que poderiam ter adquirido no presente) para receberem, anualmente, uma receita de US$35 bilhões. Nesse ritmo, serão necessários 20 anos apenas para recuperar todo o capital adiantado. 
A pergunta é: Os capitalistas que adiantam $685 bilhões — que se abstêm de consumi-los e que incorrem em risco para recuperá-los — não deveriam receber nenhuma remuneração por isso? Será que durante os próximos 20 ou 30 anos eles deveriam se contentar apenas em recuperar — isso se tudo der certo — tão-somente os $685 bilhões de que abriram mão, sem receberem remuneração alguma pelo seu tempo de espera e pelo risco em que incorreram?
Em suma, você realmente acredita na equivalência entre ter $1.000 hoje e ter $1.000 apenas daqui a 500 anos (e assumindo zero de inflação de preços), ainda que ambos os valores contenham o mesmo tempo de trabalho?
Pois é exatamente esse o raciocínio por trás de toda a análise marxista da exploração. O que há de errado, portanto, com a teoria da exploração de Marx é que ele não compreende o fenômeno da preferência temporal como uma categoria universal da ação humana.
Os capitalistas, ao adiantarem o seu capital e a sua poupança para todos os seus fatores de produção (pagando os salários da mão-de-obra e comprando maquinário), esperam ser remunerados pelo tempo de espera e pelo risco que assumem. Por outro lado, os trabalhadores, ao receberem o seu salário no presente, estão trocando a incerteza do futuro pelo conforto da certeza do presente.
O fato de o trabalhador não receber o “valor total” da produção futura nada tem a ver com exploração; isso simplesmente reflete a impossibilidade de o ser humano trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto. O pagamento salarial representa bens presentes, ao passo em que os serviços da sua mão-de-obra representam apenas bens futuros.
A relação trabalhista, longe de ser uma situação de exploração, é apenas uma relação de troca entre bens presentes (o capital do capitalista) por bens futuros (os bens que serão produzidos pelos trabalhadores e pelo maquinário utilizado, os quais só estarão disponíveis no futuro).
Böhm-Bawerk expressou tudo isso de maneira bem mais resumida: “Parece-me justo que os trabalhadores cobrem o valor integral dos frutos futuros do seu trabalho; mas não é justo eles cobrarem a totalidade desse valor futuro agora.”

sábado, 14 de setembro de 2019

Sociedades pobres e sociedades ricas (Jesús Huerta de Soto)


Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

Querer ajudar os pobres e os necessitados é um sentimento nobre e correto, que está presente, na sua forma mais pura, principalmente nos jovens e adolescentes. Mas é necessário ter alguns cuidados para não se deixar ser manipulado. É necessário estudar a situação com grande rigor científico, caso contrário corre-se o risco de acabar punindo aquele a quem se quer ajudar.

Riqueza e Pobreza

A diferença entre o Robinson Crusoé pobre e o Robinson Crusoé rico é aparentemente simples, porém essencial: o rico dispõe de bens de capital. E, para possuir esses bens de capital, ele teve de poupar e investir.
Bens de capital são fatores de produção — no mundo atual, ferramentas, maquinários, computadores, equipamentos de construção, tratores, escavadeiras, britadeiras, serras elétricas, edificações, fábricas, meios de transporte e de comunicação, minas, fazendas agrícolas, armazéns, escritórios, etc. — que auxiliam os seres humanos nas suas tarefas e, em consequência, tornam o trabalho humano mais produtivo.
Os bens de capital do Robinson Crusoé rico (por exemplo, uma rede e uma vara de pescar, construídas com bens que ele demorou, digamos, cinco dias para produzir) foram obtidos porque ele poupou (absteve-se do consumo) e, por meio do seu trabalho, transformou os recursos que não consumira em bens de capital. Esses bens de capital permitiram ao Robinson Crusoé rico produzir bens de consumo (pescar peixes e colher frutas) e, com isso, seguir vivendo cada vez melhor.
Já o Robinson Crusoé pobre, por sua vez, não dispõe de bens de capital. Todo o seu trabalho é feito à mão. Em virtude disso, ele é menos produtivo; e, por produzir menos e ter menos bens à sua disposição, ele é mais pobre, e o seu padrão de vida, mais baixo.
O Robinson Crusoé rico é mais produtivo. E, por ser mais produtivo, ele não apenas pode descansar mais, como também pode poupar mais, o que lhe permitirá acumular ainda mais bens de capital e, em consequência, aumentar ainda mais a sua produtividade no futuro. Já o Robinson Crusoé pobre consome tudo aquilo que produz. Ele não tem outra opção. Como não é produtivo, ele não pode se dar ao luxo de descansar e poupar. Essa ausência de poupança compromete as suas chances de aumentar o seu padrão de vida no futuro.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado para se diferenciar uma nação rica de uma nação pobre.
Que diferença existe entre os Estados Unidos e a Índia? Será que a população indiana é mais pobre porque trabalha menos? Não. Na Índia, trabalha-se até mais que nos EUA. Será que um indiano — um egípcio, um mexicano ou um haitiano — possui menos conhecimento tecnológico do que um americano ou um suíço? Não, o conhecimento está hoje disperso pelo mundo e tende a ser o mesmo. Com efeito, os técnicos indianos são reconhecidos como uns dos melhores do mundo. Então, por que há pessoas desnutridas e morrendo de inanição em Calcutá, mas não em Zurique ou em San Francisco?
A diferença entre uma nação rica e uma nação pobre pode ser explicada exclusivamente por um único fator: a nação rica possui uma quantia muito maior de bens de capital do que uma nação pobre.
Ao passo em que na Índia um agricultor cultiva a sua terra com duas vacas e um arado, nos EUA um agricultor utiliza um trator e um computador. E, com esses bens de capital, ele é múltiplas vezes mais produtivo que o seu congênere indiano. O americano seria o Robinson Crusoé rico, que possui uma rede e uma vara de pescar; o indiano seria o Robinson Crusoé pobre, que utiliza as próprias mãos para colher alimentos.
Quando um indivíduo tem de utilizar apenas o trabalho das suas mãos, quando aquilo que produz é utilizado imediatamente para o seu consumo final, ele é pobre. Quando esse mesmo indivíduo passa a utilizar bens de capital, como tratores, computadores e vários tipos de máquinas — os quais só puderam ser construídos graças à poupança e ao subsequente investimento de outras pessoas —, ele pode multiplicar acentuadamente a sua produtividade e, portanto, ser muito mais rico.
Quanto maior for a estrutura de produção — isto é, quanto maior for o número de etapas intermediárias utilizadas para a produção de um bem —, mais pujante tende a ser o processo de produção. Por exemplo, se o bem de consumo a ser produzido é o milho, você tem de preparar e cultivar a terra. Você pode fazer tal tarefa com um arado ou com um trator. O trator moderno é um bem de capital cuja produção exige um conjunto de etapas muito mais numeroso, complexo e prolongado do que o número de etapas necessário para a produção de um arado. Em consequência, para arar a terra, um trator moderno é muito mais produtivo que um arado. Portanto, o processo de produção do milho será mais produtivo caso você utilize um trator (cuja produção demandou um processo de várias etapas) em vez de um arado (cujo processo de produção é extremamente mais simples).
Isso explica por que um trabalhador nos EUA ganha um salário muito maior do que um trabalhador na Índia executando a mesma função. O primeiro possui à sua disposição bens de capital em maior quantidade e de melhor qualidade que o segundo. Logo, o primeiro produz muito mais que o segundo num mesmo período de tempo. Quem produz mais pode receber salários maiores.
Eis a característica que diferencia um país rico de um país pobre.

Implicações Lógicas

A única maneira de favorecer as classes trabalhadoras e os mais pobres, portanto, é dotá-los de bens de capital, os quais são produzidos graças à poupança e ao investimento de capitalistas.
O que é um capitalista? Capitalista é todo indivíduo que poupa (que consome menos do que poderia) e que, ao abrir mão do seu consumo, permite que recursos escassos sejam utilizados para a criação de bens de capital.
Em razão disso, se um determinado país pobre deseja enriquecer, deve criar um ambiente empreendedorial e institucional que garanta a segurança da poupança e dos investimentos. A única maneira de sair da pobreza é fomentar a poupança, permitir o livre investimento da poupança em bens de capital e estabelecer um sistema de respeito à propriedade privada que favoreça a criatividade empresarial e a livre iniciativa. Em suma, esse país deve permitir que os capitalistas tenham liberdade e segurança para investir e aproveitar os frutos dos seus investimentos (o lucro).
Um país que persegue os capitalistas, que tolhe a livre iniciativa, que não assegura a propriedade privada, que tributa os lucros gerados pelos investimentos e que cria burocracias e regulamentações sobre vários setores do mercado é um país condenado à pobreza. Já um país que fomenta a poupança, que respeita a propriedade privada e que permite a liberdade empreendedorial e a acumulação de bens de capital é um país que sairá da pobreza e poderá, em poucas gerações, chegar à vanguarda do desenvolvimento econômico.

Cigarras e Formigas

Vivemos num mundo repleto de demagogia e de políticos populistas. Estes são os principais inimigos da criação de riqueza. Acrescente-se a isso um arranjo democrático, e o estrago tende a ser irreversível.
Se um partido político prometer que, uma vez eleito, os salários serão duplicados e as horas de trabalho serão reduzidas à metade, as suas chances de chegar ao poder tendem a aumentar. Caso ele realmente seja eleito e decrete tais medidas, o país empobrecerá de imediato. Manipular salários — ou até mesmo imprimir dinheiro para manipular a taxa de juros — é uma medida que absolutamente nada pode fazer para contornar o fato de que vivemos num mundo de escassez. E escassez significa que os recursos têm de ser poupados antes para só então serem investidos para a criação de bens de capital. A manipulação de salários e de juros não pode abolir a escassez. Ela não pode aumentar a quantidade de bens de capital nem a produtividade dos trabalhadores. A necessidade de se abster do consumo (poupar) é um sacrifício que não pode ser encurtado por políticas populistas. O enriquecimento não é algo que possa ser alcançado pela demagogia.
Se esse mesmo partido prometer apenas uma “redistribuição de riqueza”, tirando dos ricos para dar aos pobres, os efeitos tendem a ser igualmente devastadores. Seria o triunfo da filosofia da cigarra sobre a filosofia da formiga. É fácil entender como se daria esse efeito deletério.
Os proprietários dos bens de capital de uma economia são os capitalistas. Se o partido que estiver no poder for seguidor de uma ideologia socialista que defenda a expropriação dos capitalistas e a subsequente entrega dos seus bens de capital para os trabalhadores, o que ocorrerá caso essa política seja implantada é que tais trabalhadores irão apenas consumir esse capital, pois tal consumo fará com que o seu padrão de vida aumente momentaneamente. A consequência? Tendo consumido o capital, todas as etapas intermediárias dos processos produtivos serão extintas. A estrutura de produção da economia será dramaticamente reduzida. A produtividade despencará. Todos estarão condenados à pobreza.
A riqueza física dos ricos está justamente na forma da sua propriedade de bens de capital — que foram criados por meio da poupança e disponibilizados para o uso dos trabalhadores —, os quais possibilitam um aumento da produtividade e, em consequência, um aumento dos salários dos trabalhadores. A redistribuição da propriedade desses bens de capital apenas conduzirá ao seu consumo imediato, impossibilitando-os de criar mais riqueza no futuro.
A riqueza só pode ser criada por meio da poupança e da acumulação de bens de capital. Não existem atalhos para esse processo.
O mesmo raciocínio é válido para uma situação que envolva apenas a redistribuição de dinheiro. Um milionário que tenha quase todo o seu dinheiro distribuído aos pobres, de modo a ficar praticamente com a mesma renda deles, fará apenas com que a população dessa economia esteja indubitavelmente mais pobre no futuro. Os beneficiados por tal redistribuição irão apenas consumir o seu dinheiro — pois isso lhes trará um imediato aumento do seu padrão de vida —, e não mais haverá poupança (abstenção de consumo) nessa sociedade que permita a acumulação de bens de capital. Em vez de postergar o consumo para possibilitar a criação de bens de capital, ocorrerá apenas um intenso consumo presente do capital existente. O Robinson Crusoé rico deu a sua rede e a sua vara de pescar para Sexta-Feira, que as consumiu e deixou ambos com um padrão de vida futuro bem mais reduzido.
A redistribuição de riqueza gera pobreza e perpetua a pobreza. Entretanto, como tal fenômeno não é imediato, ele pode ser implantado durante algum tempo sem que as suas consequências sejam imediatamente sentidas.
Para uma sociedade prosperar, a poupança e a acumulação de capital devem ser incentivadas; jamais devem ser punidas. Sociedades que permitem que as cigarras imponham a sua filosofia às formigas jamais poderão ser ricas.


terça-feira, 10 de setembro de 2019

Lições econômicas básicas — mas ainda difíceis de serem compreendidas (Walter E. Williams)



Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

Uma das mais difíceis lições econômicas a ser ensinada aos neófitos dessa área — e, surpreendentemente, também a vários economistas bastante treinados — é a ideia de que a teoria econômica não pode dizer nada de definitivo sobre declarações subjetivas. Ela não pode dizer se algo é ótimo, bom, ruim ou péssimo. Permitam-me alguns exemplos para esclarecer melhor esse ponto.
O vinho Cabernet Sauvignon é melhor que o vinho Fumé Blanc. A carne de peru é melhor que a carne de porco. Matéria no estado sólido é melhor do que no estado de plasma. Cada uma dessas afirmações utiliza as suas próprias premissas como prova das próprias afirmações, o que nada mais é que um raciocínio circular. Portanto, fica a pergunta: onde está a prova de cada uma dessas afirmações? Sendo declarações meramente subjetivas, discordâncias entre os debatedores podem se prolongar ad infinitum. É tudo simplesmente uma questão de opinião pessoal. A opinião de uma pessoa sobre o que é melhor ou pior é tão válida quanto a opinião de outra pessoa.
Agora, compare essas declarações com estas outras aqui: A água é formada por moléculas compostas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Cientistas não podem dividir o átomo. A distância em graus da Linha do Equador ao Polo Norte é de 90. Com afirmações positivas como essas, se houver qualquer desacordo, existem fatos aos quais o proponente dessas ideias pode recorrer para resolver a contenda. Por exemplo, se um indivíduo diz que cientistas podem dividir o átomo, mas outro diz que não, uma viagem ao acelerador linear de Stanford para observar átomos sendo divididos resolve a questão. No entanto, se você disser que o vinho Fumé Blanc é melhor que o vinho Cabernet Sauvignon e se eu disser que o vinho Cabernet Sauvignon é melhor, a nossa discordância pode se prolongar eternamente, pois não há fatos ou números concretos para os quais possamos recorrer.
Uma maneira sempre útil de saber se uma afirmação é subjetiva é observar o uso de termos e expressões como ‘deveria’, ‘tem de’, ‘melhor’ e ‘pior’. Sempre digo aos meus alunos que, embora seja importante saber se uma afirmação é subjetiva ou não para raciocinar corretamente, de modo algum estou sugerindo que eles expurguem do seu vocabulário afirmações subjetivas. Afirmações subjetivas são muito úteis para confundir os outros e levá-los a fazer exatamente aquilo que você deseja que façam para você. No entanto, no processo de enganar os outros, o indivíduo não precisa enganar a si próprio. Por exemplo, um político diz que cursar universidade “é um imperativo econômico que deve ser acessível a todas as famílias da nação”. Não há absolutamente nenhuma evidência que confirme indiscutivelmente essa afirmação. Com efeito, há vários exemplos de pessoas inteligentes e extremamente bem-sucedidas que sequer completaram o ensino médio. Da mesma maneira, há vários exemplos de pessoas com doutorado que não têm a mínima ideia do que fazem no mundo. Não obstante, tal afirmativa é uma ótima maneira de coagir os outros a pagarem pela educação de alguém.
E quanto à afirmação de que as pessoas não deveriam praticar discriminação por raça ou por sexo? Qualquer que seja a validez emocional de tal afirmação, ela é, acima de tudo, um mero juízo de valor, sem nenhuma evidência ou nenhum fato que a comprovem. Ademais, se a interpretarmos literalmente, concluiremos que ela é uma tolice sem absolutamente nenhum sentido. Pense a respeito. Discriminação nada mais é que um simples ato de escolha. Sempre que escolhemos algo — ato esse que fazemos várias vezes ao dia —, estamos discriminando. Quando escolhemos uma pessoa para ser a nossa parceira para o resto da vida, estamos inevitavelmente discriminando ou por raça ou por sexo ou por ambos. Você gostaria de viver numa sociedade em que existissem punições por essa discriminação? Gostaria que o governo estipulasse com quem você deveria se casar?
Já tive alunos que argumentaram que a discriminação por raça e por sexo no que diz respeito ao casamento é trivial e sem grandes consequências; mas que, no que concerne ao mercado de trabalho, é imperativo haver normas impondo a igualdade de oportunidade. Mas o que é igualdade de oportunidade? E como você pode afirmar que ela está sendo aplicada? Sempre pergunto aos alunos que defendem essa ideia se eles, ao se formarem, darão a cada empregador uma igualdade de oportunidade para contratá-los; se eles irão se oferecer igualmente para as grandes empresas que pagam bem e para o administrador do cemitério que precisa de mais coveiros. E eles sempre me olham com uma expressão atônita e dizem, um tanto constrangidos, que não. E então eu pergunto: “Se vocês não darão a cada empregador a igualdade de oportunidade de contratá-los, por que então todos os empregadores deveriam ser forçados a lhes dar uma igualdade de oportunidade para serem contratados?”.
Sempre que a discussão resvala para a lei da demanda, o termo “necessidade” sempre surge. Um estudante pode dizer que um carro, um celular e água corrente são necessidades essenciais. A minha resposta é que carros, celulares e água corrente não podem ser necessidades essenciais, pois as pessoas conseguiram viver sem esses itens por muito mais tempo do que vivem com eles. Não há nada sem o qual as pessoas não possam viver; apenas as consequências é que podem não ser muito agradáveis.
E você pode dizer: “Williams, mas este seu pensamento não é nada misericordioso!”. Correto. Creio que ser misericordioso para com os semelhantes é algo que exija análise isenta e raciocínio desapaixonado. Em outras palavras, temos de pensar com o nosso cérebro, não com o nosso coração.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A economia é a filosofia da tolerância (Garrett Petersen)


Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

O mundo é repleto de esnobes. Há o esnobe da música, que é aquela pessoa que reclama que a maioria das pessoas prefere Lady Gaga a Stravinsky. Há o esnobe do cinema, que reclama que a maioria das pessoas prefere filmes de ação a filmes de arte. Há o esnobe da literatura, que reclama que a maioria das pessoas prefere 50 Tons de Cinza a Schopenhauer. E há o esnobe da culinária, que reclama que a maioria das pessoas prefere pizza a um fino sashimi.
Ou seja, qualquer que seja o assunto debatido, é tentador fazer um julgamento crítico sobre a preferência dos outros.
O bom economista, ao aprender economia — e ao absorver as suas lições —, aprende a ser menos esnobe. A sua análise econômica sempre parte do princípio de que as preferências das pessoas já estão por elas determinadas: e ele sabe que nada pode fazer quanto a isso. O bom economista, ao testemunhar uma pessoa pedindo pizza em vez de sashimi, vê apenas uma pessoa agindo com o intuito de alcançar um objetivo que ela, subjetivamente, considera ser o melhor. O bom economista é aquele que sabe deixar de lado as suas preferências pessoais, assim como as suas eventuais propensões à soberba, para fazer uma análise sem juízo de valor.
Até mesmo termos corriqueiros como “responsável” ou “irresponsável” estão carregados de juízo de valor. Atividades que reconhecemos como responsáveis — tais como poupar para a aposentadoria, evitar riscos para a vida ou para os membros do corpo e ter um estilo de vida saudável — são comportamentos consistentes com um arranjo específico de preferências. Uma pessoa que dê mais valor ao futuro do que ao presente (em termos mais economicistas: alguém que possui uma baixa preferência temporal) preferirá todos esses comportamentos.
Já atividades que reconhecemos como irresponsáveis — tais como gastar de maneira perdulária e depravada, correr risco de morte desnecessariamente, comer porcarias e utilizar drogas — também são comportamentos consistentes com um arranjo específico de preferências. Uma pessoa que pensa mais no presente e pouco se importa com o futuro (em termos mais economicistas: alguém que possui uma alta preferência temporal) será atraída por algumas dessas atividades.
A ciência econômica nos permite entender essas diferentes preferências, assim como as suas consequências; mas, por si só, ela não nos permite fazer juízo de valor; ela não nos permite determinar se um determinado arranjo de preferências é superior a outro.
A ciência econômica não faz juízo de valor. O seu objetivo é explicar fenômenos — as suas causas e consequências. E só. Juízo de valor é tarefa para a filosofia.
É bastante comum que vejamos um profissional bem-sucedido fazer um juízo crítico a respeito de familiares ou amigos que preferiram fazer farra em vez estudar e que, por esse motivo, hoje ganham menos que ele. Porém, ao fazer tal juízo, esse profissional está cometendo o erro de interpretar as ações dessas pessoas tomando por base as suas próprias preferências. Fazer farra certamente seria um meio ruim para alcançar o almejado objetivo do sucesso profissional, mas isso não significa que fazer farra tenha sido a escolha errada para aqueles que optaram por essa ação.
Com efeito, dado que cada indivíduo está mais bem informado sobre os seus próprios gostos e interesses do que terceiros, é perfeitamente factível crer que alguém que escolha a farra está agindo com a intenção de satisfazer da melhor maneira possível os seus fins.
O bom economista, pelo fato de estar treinado para observar as ações de terceiros sem fazer juízo de valor, acaba sendo mais tolerante na sua vida pessoal. Recentemente, o economista Russ Roberts disse gostar de “dar dinheiro para os miseráveis principalmente quando sabe que eles gastarão esse dinheiro com drogas e álcool. Afinal, quando você está desesperadoramente miserável, drogas e álcool podem ser exatamente aquilo que você mais quer.” Creio ser seguro presumir que Roberts, um economista com Ph.D., jamais esteve numa situação tão desesperadora quanto essa. E, ainda assim, ele demonstra o seu respeito pela autonomia dessas pessoas e também pela capacidade delas de escolher por si próprias. Ao agir assim, Roberts demonstra não se preocupar com o conteúdo das escolhas dessas pessoas. O que ele realmente não está fazendo é projetar as suas próprias preferências sobre esses indivíduos.
Existe uma corrente da economia moderna que deseja reintroduzir o juízo de valor a respeito das preferências de terceiros. Essa corrente é derivada da economia behaviorista (comportamental), a qual tem o objetivo de mostrar que as pessoas não se comportam “racionalmente” (no sentido neoclássico) ao buscarem os seus objetivos. De acordo com essa corrente, as pessoas são impulsionadas por vários erros, por várias influências e propensões.
Armado com as ferramentas de economia behaviorista, aquele nosso profissional bem-sucedido poderia alegar que os seus amigos e familiares menos responsáveis foram, na realidade, vítimas de influências. Ou seja, quando optaram por farrear em vez de estudar, eles não estavam verdadeiramente agindo com o intuito de alcançar, da melhor maneira possível, os seus objetivos. Eles estavam agindo de uma maneira consistente com as suas preferências daquele momento, mas não estavam atuando de maneira consistente com a sua “verdadeira” preferência, que seria aquela que os intelectuais seguidores da economia behaviorista estipularam ser a melhor.
O erro fundamental desse raciocínio behaviorista é fácil de ser percebido, mas só é percebido pelo economista bem treinado: não há nenhuma base teórica para definir qual comportamento representa os “verdadeiros” melhores interesses de cada indivíduo.
Se um indivíduo possui vários arranjos de preferências inconsistentes, como seria possível afirmar que um arranjo específico seja o “verdadeiro” e que todos os outros sejam “falsos”? É fácil deixar que as nossas preferências influenciem o nosso julgamento. O profissional bem-sucedido acredita que estudar em vez de farrear seria a preferência verdadeira simplesmente porque ele prefere estudar a farrear. O intelectual que preza a saúde acredita que a sua preferência por salada em vez de por batatas chips é a preferência verdadeira e, portanto, faz campanha para que as pessoas comam menos batatas chips e mais salada.
O bom economista deve saber resistir à tentação de inserir as suas propensões e preferências nas análises econômicas que realiza. A tolerância criada por essa maneira de pensar é um valioso efeito colateral do estudo da ciência econômica. Ela anda de mãos dadas com a noção de que o economista é tanto um estudioso quanto um observador neutro da sociedade — e não um mecânico ou um médico. É agindo assim que os bons economistas poderão, um dia, neutralizar aqueles totalitários que desejam dominar e impor a sua visão de mundo sobre todas as outras pessoas.

domingo, 8 de setembro de 2019

Como o estado deforma a ética e introduz dois padrões de moralidade (Hans F. Sennholz)



Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

A velha lei cristã que nos ensina a tratar com respeito, cortesia e amabilidade as outras pessoas é uma regra irredutível de conduta individual, uma regra que não possui flexibilidade ou brechas que permitam interpretações deturpadas. Trata-se de um axioma básico para que toda cooperação social e toda coexistência humana sejam pacíficas e produtivas. Com efeito, trata-se de um alicerce indispensável para qualquer civilização que queira prosperar.
No entanto, é inegável que estejamos, de maneira inconsciente e gradativa, solapando a rigidez desse alicerce. E tal procedimento já vem ocorrendo há várias décadas, de modo que aquele outrora robusto sustentáculo hoje se tornou apenas um pequeno toco não mais capaz de sustentar com vigor as relações inter-humanas, bem como toda a vida social.
É verdade que a lei do amor ao próximo ainda fundamenta grande parte das nossas relações individuais diretas. Dentro das nossas famílias, praticamos — ou pelo menos nos esforçamos para praticar — esse mandamento. Nas nossas relações diretas com os parentes próximos e até mesmo com os vizinhos, nós nos esforçamos para não infligir nenhum dano sobre eles e sobre as suas famílias. Uma relação amistosa e cordial ainda é algo mais frequente que uma relação maliciosa e destrutiva. Em todas as nossas interações sociais, sejam elas associações econômicas ou quaisquer outras relações casuais, basicamente respeitamos os direitos e a liberdade do nosso semelhante.
Mas tudo isso se altera quando entra em cena o estado. Ou, colocando de outra forma, tudo isso se altera quando vemos no estado uma ferramenta legítima para a imposição e a consecução das nossas demandas. Com o estado, somos indivíduos transfigurados. Somos outros. Com esse organismo político, não existe espaço para a lei do amor ao próximo; não há espaço para a cortesia, para o respeito e para a amabilidade. Quando agimos utilizando o estado para atender as nossas demandas políticas, agimos de uma maneira através da qual um indivíduo minimamente escrupuloso jamais sonharia em agir nas suas relações inter-humanas diretas. Não existe espaço para a cortesia e para o respeito ao próximo quando fazemos do estado o sistema canalizador das nossas demandas.
Considere os seguintes exemplos.
Como indivíduos, não pensamos em extrair, por meio da violência ou da ameaça de violência, nenhuma fatia da riqueza ou da renda do nosso vizinho. Porém, na vida política, estranhamente passamos a nos sentir livres e moralmente desimpedidos para (1) extrair boa parte da sua renda por meio de altas alíquotas de impostos e para (2) controlar a sua riqueza — e a maneira como ele a investe — por meio de uma multiplicidade de regulamentações econômicas.
Como pais, não pensamos em coagir o nosso vizinho para que contribua para a educação dos nossos filhos. Porém, como membros de um organismo político, recorremos à tributação com o intuito de coagi-lo a financiar a educação dos nossos rebentos, de modo que tenham “educação pública, gratuita e de qualidade”. De quebra, isso faz com que nos sintamos “liberados” das nossas obrigações morais e pessoais para com os nossos próprios filhos. Alguém que quisesse propositalmente criar uma sociedade de pais indolentes e negligentes dificilmente teria uma ideia melhor.
Como seres humanos, não pensamos em surrupiar o nosso vizinho de toda a sua poupança e aposentadoria. Porém, como seres políticos, defendemos que o valor delas seja brutalmente reduzido por políticas governamentais de inflação monetária, de crédito fácil e de empréstimos subsidiados para pessoas e empresas de que gostamos.
Como indivíduos, não pensamos em encarecer artificialmente aqueles produtos que o nosso vizinho mais pobre consegue comprar. Porém, como membros do corpo político, consideramos perfeitamente normal obrigá-lo a pagar mais caro por meio de políticas governamentais de desvalorização cambial e de imposição de tributos sobre a importação, as quais visam proteger aquelas empresas ineficientes pelas quais temos alguma preferência.
Como pessoas caridosas, jamais pensaríamos em atacar a herança de uma viúva e dos seus órfãos; e jamais pensaríamos em coagi-los para que nos colocassem como coerdeiros. Porém, como membros do corpo político, podemos obrigá-los a repassar metade da sua herança para nós.
Como indivíduos empreendedores, não cogitamos obrigar os nossos concidadãos que vivem em outras partes do país a nos auxiliar em nossos empreendimentos locais; porém, como participantes do sistema político, nós os obrigamos a nos ajudar a alcançar os nossos objetivos econômicos por meio de subsídios, repasses obrigatórios e outras contribuições governamentais.

Dois parâmetros distintos de moralidade

Se homens malvados e violentos passassem a assediar o nosso vizinho com o intuito de extorquir uma parte da sua renda (ou toda ela) — ou, simplesmente, se pusessem-se a oprimi-lo de alguma forma —, nós corajosamente sairíamos em defesa sua. Se ele porventura ferisse ou até mesmo matasse um dos seus agressores, iríamos absolvê-lo de qualquer acusação criminosa por ter agido em legítima defesa.
No entanto, se esse mesmo vizinho, por ter se recusado a ter os seus bens confiscados pelo estado por não ter pago devidamente os seus impostos, viesse a ferir ou até mesmo a assassinar em legítima defesa um “representante do estado” que foi à sua propriedade para confiscá-la, iríamos condená-lo por ter se recusado a abrir mão de parte da sua riqueza e por, em consequência, ter impedido o governo de utilizá-la para financiar aqueles programas de que gostamos. E, com toda a nossa fúria e com todo o nosso desejo de vingança, defenderíamos que o nosso vizinho fosse jogado numa penitenciária e que por lá ficasse “por um bom tempo”.
Utilizamos dois padrões distintos de moralidade para mensurar os nossos feitos e as nossas atitudes. Somos rápidos e severos para condenar os delitos que o nosso vizinho comete. Mas somos incapazes de julgar com a mesma severidade as nossas próprias ações quando estas são efetuadas por meio do sistema político.
Condenamos um vizinho quando ele comete fraude, roubo, esbulho, usurpação, sequestro ou assassinato contra os nossos semelhantes. No entanto, somos incapazes de fazer um autojulgamento quando defendemos que o governo confisque a riqueza alheia por meio de impostos; sequestre aqueles indivíduos que não “pagaram devidamente” esses impostos; assassine aquelas pessoas que oferecerem resistência a esse sequestro; reduza a poupança e o poder de compra da população através da impressão de dinheiro (falsificação); estatize ou assuma forçosamente o controle majoritário de empresas privadas; e usurpe por meio de regulamentações, de burocracias o direito dos indivíduos de exercerem atividades econômicas que concorram com as empresas favoritas do governo.

Duas almas em nosso peito

Condenamos um indivíduo por desconsiderar as suas promessas, os seus acordos e os seus contratos; e nos esforçamos para fazê-lo cumprir as suas obrigações contratuais através de ações judiciais e de outros meios jurídicos ao nosso dispor. Mas prontamente condescendemos com práticas governamentais que desprezam promessas e até mesmo os mais básicos mandamentos éticos. Podemos, inclusive, chegar ao cúmulo de nos simpatizarmos com políticas explicitamente ilegais e condenar aqueles que são prejudicados por elas e que agiram em legítima defesa para se protegerem.
A realidade é que temos duas almas em nosso peito: uma que procura fazer o que é moral e eticamente certo; e outra que renega a própria existência de padrões morais e éticos. A humanidade já pagou, está pagando e ainda pagará um enorme preço por ter rejeitado os mais básicos princípios cristãos do respeito, da cortesia e do amor ao próximo na esfera da ação política, a qual só faz crescer. O preço foi, é e será pago na forma de escravidão, guerras e crescentes tensões sociais.

Desejos não são direitos — eis uma maneira de distinguir o que é um direito e o que não é (Lawrence W. Reed)


Tradução: Leandro Augusto Gomes Roque
Revisão: Marcelo Werlang de Assis

Apenas observe o cenário ao seu redor: há uma lista, em contínua expansão, de coisas às quais as pessoas afirmam ter o “direito” de receber “gratuitamente”. Vai desde saúde, educação e transporte até estabilidade no emprego, aposentadorias nababescas, lazer, cultura e cirurgias de mudança de sexo.
No entanto, quando se considera seriamente o assunto, surge a conclusão de que simplesmente não existe nenhuma base lógica e racional para tais demandas. Há apenas desejos e vontades, em ampla escala, por bens (produtos e serviços) — algo que supostamente implica a necessidade de que eles se tornem direitos.
A partir daí, é apenas um passo para que grupos de interesse façam pressão e pratiquem lobby sobre o governo e recorram a tentativas legislativas ou judiciais para criar tais direitos — os quais serão, em seguida, promovidos como melhorias sociais.
Mas isso apenas conduz a novas perguntas.
Pode um desejo automaticamente virar um direito? Um direito é a mesma coisa que um desejo? Por quê? Por que não?
Se eu sofri uma falência renal e preciso de um rim, teria eu o direito de pegar o seu? Se preciso urgentemente de um tratamento médico, posso obrigar outra pessoa a custeá-lo? Posso obrigar um médico a me tratar gratuitamente? Qual é a diferença entre esses cenários?
Seria um direito algo que pode (ou deve) ser concedido (ou negado) pelo voto da maioria?
Na sua opinião, a Constituição, uma ordem executiva ou uma lei do Congresso criam direitos? Ou será que tais instrumentos simplesmente reconhecem direitos que as pessoas inerentemente possuem pelo fato de serem humanas?
Se você fizer essas mesmas perguntas ao cidadão comum, esteja certo de que ouvirá uma pletora de respostas diferentes e conflitantes.
Este breve ensaio não fornecerá respostas detalhadas para todas as perguntas. Tampouco fará todas as perguntas relevantes. O seu propósito é mais limitado que isso. Se este texto ao menos levar o leitor a pensar um pouco mais detidamente sobre a questão, o objetivo já terá sido alcançado.

Uma definição prática

Para um direito ser genuinamente válido é necessário que todos nós, como seres humanos, tenhamos a capacidade de usufruir esse mesmo direito, ao mesmo tempo e da mesma maneira.
A obviedade dessa afirmação vem do fato de que, para algo ser realmente um direito, todos os outros seres humanos devem logicamente ter esse mesmo direito. Não pode haver nenhum conflito ou contradição lógica. Um indivíduo não pode, sem cair em contradição, alegar que possui um direito e, ao mesmo tempo, negar esse direito para terceiros. Fazê-lo seria o equivalente a admitir que esse direito não seja realmente um direito, mas sim um privilégio.
Portanto, é necessário que exista a possibilidade de que todos os indivíduos usufruam esse suposto direito simultaneamente, sem nenhuma contradição lógica. Se, quando eu exerço um direito que alego possuir, estou fazendo com que seja impossível outra pessoa exercer esse mesmo direito ao mesmo tempo, então a minha ação implica que esse suposto direito é exclusividade minha. A minha ação implica que tal direito é apenas meu — e não de outra pessoa. O que é um direito para mim é uma obrigação de terceiros. Ou seja, não é um direito, mas sim um privilégio.
Exemplo básico. Se eu alego ter o direito de receber serviços de saúde gratuitos, então, na prática, estou dizendo que outra pessoa possui o dever de me fornecer tais serviços — ou, de modo mais realista, estou dizendo que outra pessoa tem o dever de pagar para que eu receba esses serviços.
Ou seja, outro indivíduo deve ter a sua renda (propriedade) confiscada para custear os meus serviços médicos.
Obviamente, essa outra pessoa, a partir deste momento, não mais possui o mesmo direito que eu tenho. O meu direito é receber serviços gratuitos; o “direito” dela é me financiar esses serviços. O meu direito criou um dever para essa pessoa: ela agora é obrigada a efetuar uma ação que não necessariamente desejava efetuar. Embora nós dois sejamos igualmente seres humanos, a liberdade de escolha dessa pessoa foi subordinada à minha liberdade de escolha. Aquele direito que concedi a mim (serviços de saúde gratuitos) está sendo negado a essa outra pessoa, pois ela, ao ficar com o fardo de pagar pela minha saúde, perdeu o seu “direito” a serviços de saúde gratuitos.
Para que eu adquirisse um direito, essa pessoa teve de arcar com uma obrigação. Pior ainda: ela teve a sua propriedade espoliada — o que seria uma flagrante agressão ao seu direito de propriedade.
A seguir, apresento duas listas. A primeira relaciona os itens aos quais pessoalmente acredito que você tenha direito. A segunda é uma lista de coisas às quais pessoalmente creio que você não tenha direito (e prontamente lhe concedo todo o direito de discordar de mim).

Coisas a que você tem direito:
1. Não ter a sua vida retirada de você (a menos que você tente retirar a vida de outro sem justificativa ou motivo de legítima defesa);
2. Pensar o que quiser;
3. Falar o que quiser (o que é apenas a expressão verbal ou escrita do item #2), desde que o faça utilizando os seus próprios meios.
4. Manter a propriedade material daquilo que você construiu por conta própria, daquilo que ganhou de presente e daquilo que adquiriu via transação pacífica e voluntária.
5. Empreender e ganhar a vida fazendo aquilo que quiser, desde que não agrida a vida e a propriedade de terceiros (que é uma consequência do item #4).
6. Criar e educar os seus filhos como quiser.
7. Viver em paz e com liberdade, desde que não ameace a paz e a liberdade de terceiros.

Coisas a que você não tem direito:
1. Internet de banda larga e alta velocidade;
2. Cheeseburgers, vinhos ou um iPhone;
3. A casa, o carro, o iate, o jatinho, a renda, o salário, a empresa ou a conta bancária de outra pessoa;
4. Viver à custa do trabalho de terceiros com os quais você não fez um acordo voluntário (você não tem o direito de escravizar alguém ou até mesmo de confiscar uma parte dos ganhos de outras pessoas);
5. Obrigar um curandeiro ou um renomado cirurgião — ou qualquer profissional entre esses dois extremos — a tratar você;
6. Escolas, faculdades, métodos contraceptivos, colonoscopias ou estádios financiados por meio de impostos (ou seja, com dinheiro coercitivamente confiscado de terceiros);
7. Qualquer bem que não seja seu, por mais que você realmente o queira e acredite ter o direito de possui-lo;
8. Estipular como outras pessoas devem educar os seus filhos (principalmente obrigá-las a colocá-los em escolas);
9. Qualquer bem (produto ou serviço) gratuito — a menos, é claro, que o proprietário legítimo deles opte por distribuí-los livremente;
10. Qualquer coisa que algum político tenha prometido, dizendo que você possui direito a ela (moradia, transporte, lazer, cultura, felicidade, beleza — e assim por diante).

Sim, há algumas zonas cinzentas. Por exemplo, embora eu creia que você tenha o direito de criar e educar os seus filhos como quiser, maus-tratos, abusos e negligência não são defensáveis. No entanto, vamos manter o foco nos princípios essenciais.

Direitos positivos versus direitos negativos

Veja a lista novamente, com cuidado. Qual é a diferença essencial entre a natureza da primeira lista e a natureza da segunda lista?
Acertou. Na primeira lista, nada é exigido de terceiros, exceto que eles deixem você em paz. Nada é confiscado, nada é expropriado, e nenhuma ação positiva é imposta. A liberdade, a propriedade e a vida das outras pessoas seguem intactas. Nenhum passivo foi criado.
Já na segunda lista, porém, para que você tenha direito a algo, outras pessoas têm de ser obrigadas a fornecer esse algo para você. A liberdade, a propriedade e até mesmo a vida de terceiros foram negativamente afetadas. Trata-se de uma diferença monumental.
A primeira lista abrange os “direitos naturais”, que também são chamados de “direitos negativos”. Eles são naturais porque são inerentes à natureza humana; são direitos que todos nós, como seres humanos, usufruímos pela simples razão de sermos humanos. Esses direitos derivam da nossa natureza essencial como indivíduos singulares e sensatos. E são negativos porque não impõem obrigações a terceiros, exceto um compromisso de não agredir. De novo: a única imposição que tais direitos impingem a terceiros é a de não efetuar uma determinada ação.
Já os itens na segunda lista são chamados de “direitos positivos” porque outras pessoas devem fornecê-los a você ou ser coagidas a fazê-lo caso se neguem. Ou seja, tais direitos necessariamente impõem a terceiros a obrigação de efetuar ações positivas.
Ao passo em que os direitos negativos simplesmente impõem a terceiros o dever de não iniciar coerção contra inocentes — seja na forma de violência bruta, seja na forma furtiva de obrigá-lo a pagar por bens (produtos e serviços) que serão ofertados a terceiros —, os direitos positivos significam como consequência exatamente a agressão contra terceiros inocentes.
Adicionalmente, os direitos naturais ou negativos são irrefutáveis: eles não podem ser negados, pois, se isso ocorrer, a pessoa que os negar estará caindo em contradição, pois estará negando a sua própria condição de ser humano.

Conclusão

Embora eu acredite que nem você, nem eu tenhamos direito a nenhuma daquelas coisas disparatadas na segunda lista, devo acrescentar que nós certamente temos o direito de criá-las, de buscá-las, de recebê-las como presente de benfeitores voluntários ou de obtê-las por meio de transações comerciais. Apenas não possuímos o direito de obrigar terceiros a nos fornecê-las.
Se qualquer um de nós tivesse esse direito de tomar essas coisas de terceiros, então por que outras pessoas também não teriam o mesmo direito de tomá-las de nós?
A existência de “direitos negativos” significa simplesmente que ninguém pode escravizar, coagir ou despojar terceiros da propriedade deles. Acima de tudo, significa que cada um de nós pode oferecer resistência a tais condutas quando outros nelas incorrerem.
Ademais, querer ter acesso a bens (produtos e serviços) sem ter desempenhado nada a ninguém significa simplesmente desejar escravizar terceiros. Se não fosse pelo corrompido encanto de que seja possível obter algo em troca de nada, as pessoas há muito já teriam rejeitado a ideia de que desejos implicam direitos.
Entretanto, se a atual tendência dessa noção de que desejos sejam direitos não for revertida, a nossa cobiça pela propriedade alheia seguirá nos corrompendo de maneira cada vez mais profunda. As consequências podem ser nefastas. Na mais benevolente das hipóteses, estaremos criando uma sociedade mimada que muito exige e pouco produz.