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Tradução:
Marcelo Werlang de Assis
O ressentimento é a única emoção que
pode durar a vida inteira e que nunca desapontará você. Em comparação, todas as
demais emoções são passageiras e falíveis. Eu tentei odiar alguém por anos;
isso, entretanto, revelou-se impossível: o ódio desaparece como as cores das
flores prensadas. Mas o ressentimento! Ele é a solução perfeita para o seu
fracasso na vida. E, graças a Deus, todos nós cometemos falhas em algum sentido
ou outro, pois nada seria tão insuportável, causando tanto ressentimento, quanto
o sucesso total.
O sucesso dos outros fomenta o
ressentimento, especialmente o sucesso em uma área na qual você gostaria de ser
bem-sucedido. Sempre que eu leio um trecho de prosa maravilhosa, eu experimento
o prazer dessa leitura, é claro; mas esse prazer, muito antes, mistura-se com a
irritação e, por fim, com o ressentimento. Por que o meu semelhante é capaz de escrever
algo mais elegante, mais perspicaz, mais poético e mais conciso do
que eu? O que ele fez para merecer o seu talento? A sorte dos escritores de
língua inglesa é que Charles Dickens, por exemplo, tinha muitos e graves defeitos,
pois, caso contrário, a genialidade autoevidente e transcendente de alguns dos
seus parágrafos os paralisaria, minando a sua vontade de pegar caneta e papel
ou de mexer os dedos no teclado.
Como se costuma dizer nos romances
russos, chega de filosofia. Vamos agora descer da atmosfera rarefeita da
abstração e nos deslocar para a realidade sórdida de um fenômeno real — neste caso,
o fenomenal sucesso de um livro chamado Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty. Ele
está vendendo tão rápidamente que as impressoras não conseguem acompanhar a
demanda. Não se encontra a obra nas livrarias, mesmo (nas palavras de Lane, o
mordomo do personagem Algernon em The Importance of Being Earnest, de Oscar Wilde) com dinheiro vivo.
Isso é realmente impressionante, uma
vez que Thomas Piketty não é Dan Brown, o qual vende tolices
abertamente supersticiosas escritas em prosa abominável para os crédulos pós-religião.
Não: o livro de Piketty é grande, com centenas de páginas, e está recheado de
dados misteriosos, que agora temos de chamar de fatos. Felizmente, eu comprara uma
cópia desse livro quando ele apareceu pela primeira vez na França; e, em razão da
sua rápida ascensão ao status de
ícone internacional, eu tenho a esperança de que a minha edição original seja, no
momento oportuno, considerada uma preciosa relíquia sagrada com propriedades
curativas.
Obviamente, ter comprado um livro e tê-lo
lido não são a mesma coisa. Infelizmente, apesar do seu tamanho e do seu peso,
eu o perdi. Mas eu o carregava comigo por um tempo, assim como, há muitos anos,
quando era um estudante de medicina, eu carregava comigo um livro de patologia,
na esperança de que eu aprenderia o seu conteúdo por meio de um processo de
osmose através das capas. No entanto, concluí que tinha de abri-lo e aprender
apenas o suficiente para passar nos exames. Desnecessário dizer, eu esqueci tudo
desde então.
Eu não costumo escrever sobre livros
que não li; e eu suponho que, na minha vida, devo ter analisado pelo menos uns 500
livros. Seria falsa modéstia negar que eu li todos eles, incluindo muitas vezes
as notas de rodapé, bem como negar a minha solidariedade e a minha empatia com
os autores, até mesmo com os autores de livros tão ruins que eu considerava
apenas ético fazê-lo — e isso apesar do fato de que não é
preciso comer o pote inteiro de manteiga para saber que ela está estragada.
Todavia, duas ideias da obra
de Piketty parecem ter sido discutidas com maior vigor em todas as análises
que li sobre o seu livro; assim, eu suponho que elas devem representar o cerne
daquilo que ele escreveu.
A primeira ideia é a de que há, em
relação ao valor do capital, uma tendência de longo prazo a aumentar mais
rapidamente que o ritmo de crescimento da economia como um todo; e, já que a
maioria das pessoas depende, para a sua sobrevivência, do seu trabalho em vez do
seu capital, a desigualdade de riqueza só pode aumentar, chegando ao ponto de
se tornar social e politicamente insustentável. Isso pode ser colocado em
termos malthusianos: o valor do capital aumenta geometricamente, ao passo em que
o valor do rendimento do trabalho aumenta aritmeticamente. Ou, de novo, em
termos marxistas: “Em uma determinada fase de desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de
produção existentes. (...) Em seguida, começa uma era de revolução social.”
Mas Piketty não é um
revolucionário; muito sensatamente, ele deseja evitar uma agitação violenta. Os
meios através dos quais propõe isso é a sua segunda ideia: um imposto global
sobre o capital — presumivelmente, para atingir realmente
o seu desejado fim de uma maior igualdade, um imposto substancial.
Em primeiro lugar, analisemos a primeira
ideia. Eu hesito em expor o meu próprio caso mais uma vez diante do público,
mas alego a atenuação de que, pelo menos, trata-se de um assunto sobre o qual sou
relativamente especialista. Como me prejudica o fato de que a proporção entre a
riqueza de Bill Gates e a minha excede o quociente entre a minha riqueza e a de
alguém que se encontra sob os cuidados do assistencialismo estatal? Eu me considero
uma pessoa afortunada: eu nunca passei por quaisquer privações e dificuldades,
pelo menos por nenhuma que não fosse a consequência do meu próprio
comportamento ou das minhas próprias escolhas. Já fui pobre, mas não passei
fome. Jamais sofri injustiça flagrante, exceto algumas detenções injustas em
países da má fama (foi culpa minha tê-los visitado, embora, é claro, eu os
tenha adorado).
A fortuna de Bill Gates só me
prejudica se eu deixar o ácido da inveja e do ressentimento corroer a
minha mente. Isso não significa dizer que algumas fortunas não possam ter sido
adquiridas de maneira imoral e ilícita: por exemplo, as fortunas de muitos
oligarcas russos. Há algo de errado com essas riquezas não porque elas são
muito maiores que a minha, mas sim porque elas foram adquiridas de forma imoral
e ilícita. Não há dúvida de que existem muitas áreas cinzentas entre a legitimidade
completamente branca e a escura negritude da desonestidade absoluta, mas as
óbvias incertezas da vida devem ser suficientes para refrear e conter o nosso
ressentimento.
Quanto ao imposto sobre o
capital, Piketty está certo ao dizer que ele tem de ser global, pois, caso
contrário, haveria fugas de capitais ou restrições locais muito severas sobre os
movimentos de capitais — e isso não seria economicamente
produtivo ou propício à igualdade. Um imposto global sobre o capital, porém,
exigiria uma autoridade mundial para estabelecê-lo, arrecadá-lo e impingi-lo — com efeito, uma espécie de União Europeia gigante. Sinto-me feliz
porque não estarei vivo para ver isso ocorrer, mas eu duvido que alguém,
nascido ou não nascido, chegará a ver isso acontecer, pelo simples motivo de que
os chefes supremos desse governo mundial precisariam de um paraíso fiscal no qual
colocar o seu próprio dinheiro.
Eu suspeito que o enorme sucesso
desse livro de Piketty seja uma homenagem ao nível de ressentimento que
impera no mundo — e não o resultado de uma sede por
conhecimento, especialmente entre aqueles indivíduos suficientemente ricos para
comprá-lo, usando-o, em grande medida, como um reles acessório. A verdade, como
Edward Gibbon nos ensina, raramente encontra uma recepção tão favorável no
mundo. Eu posso estar errado, pois ainda não li a obra. Entretanto, posso invejar
o seu sucesso.
Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos do médico
psiquiatra e escritor britânico Anthony Daniels (o seu outro pseudônimo é
Edward Theberton). Ele escreve sobre arte, cultura, medicina, política e
educação. Na sua obra, Dalrymple frequentemente argumenta que as visões
esquerdistas e progressistas que prevalecem nos círculos intelectuais do
Ocidente diminuem a responsabilidade dos indivíduos pelas suas próprias ações e
erodem a moral tradicional, contribuindo para a formação, nos países ricos, de
uma subclasse afligida pela violência endêmica, pela criminalidade, pelas
doenças sexualmente transmissíveis, pela dependência do assistencialismo
estatal e pelo uso abusivo de drogas. Muitos dos escritos de Dalrymple, que foi
médico de uma prisão inglesa, baseiam-se na sua experiência com criminosos e
doentes psiquiátricos.